Durante pelo menos duas décadas a máquina Rolleyflex foi a vedete das coberturas jornalísticas. Nos anos 60 e 70, quando as maiores revistas semanais do país eram a Manchete e O Cruzeiro, os fotógrafos empunhavam essa máquina, pesada e precisa, para as suas coberturas históricas. Forneciam as imagens necessárias para as grandes reportagens de David Nasser, Luiz Carlos Barreto, Jean Manzon, Joel Silveira, Murilo Mello Filho, Fernando Pinto etc. Foi com uma delas que Marcelo Escobar e José Avelino perderam a vida, na tentativa de cobrir as misteriosas ações de traficantes, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. O trem virou, havia muita gente, mas só morreram os dois jornalistas da Manchete. Estranha coincidência.
Com o avanço da tecnologia, as máquinas fotográficas tornaram-se bem mais leves e passou-se a utilizar o formato de 35mm. O mundo, a partir da Alemanha (Leica) e do Japão (Nikon e Canon), conheceu lentes mais poderosas do que o olho humano, embora de menor resistência aos impactos da velha 6x6. Ficaram a glória da Rolleyflex e algumas histórias curiosas, como a que presenciei, na redação da Rua Frei Caneca, numa tarde de grande calor. O fotógrafo Alberto Jacob folheava de pé a sempre bem impressa revista National Geographic. De repente, como gostava de fazer após o almoço, Adolpho Bloch apareceu para ver como andavam as coisas. Aproximou-se do fotógrafo e elogiou a revista:
- Como é bonita, não é verdade? Tem grandes fotos!
O fotógrafo, chamado por Gervásio Batista de ''retratista'', retrucou ao elogio do patrão:
- Também, seu Adolpho, com aquelas máquinas que eles têm...
- Máquinas - disse o velho Bloch -, máquinas... Se eu te der uma caneta Parker você escreve como o Machado de Assis?
Durante muitos anos essa história rendeu na redação da revista colorida, que desbancou a concorrente e foi líder de vendas por mais de 20 anos. Sempre com fotos espetaculares, fruto do trabalho dos grandes profissionais com que contava, ao lado da indispensável parceria com as suas poderosas máquinas fotográficas.
E aqui chego ao ponto que motivou essa lembrança. O JB, por inspirada decisão de Augusto Nunes, lançou a série Olhares sobre 1964. São lembranças de grande valor histórico, pois o tempo vai esmaecendo os fatos, muitas personalidades já morreram e é preciso fazer esse registro, antes que tudo se embaralhe e não se possa recordar devidamente, com fidelidade, o que muitos chegaram a chamar de Revolução, com um certo exagero.
Como chefe de reportagem da Manchete, acompanhei todas as peripécias muito de perto. Tinha informações preciosas de outras fontes jornalísticas - e com isso alguns furos foram assinalados. Num dado momento, valendo-me de uma informação e muito de minha intuição, mandei um fotógrafo para o Aeroporto Santos Dumont. ''Quem sabe o Jango, sentindo-se acuado, sairá por ali?''
Não deu outra coisa. O fotógrafo Antonio Pithon, especialista em temas policiais, mas recrutado para a cobertura daquela imensa agitação, clicou com muita felicidade o presidente na pista do aeroporto, abotoando o paletó, com dois ou três seguranças, enquanto o avião acionava os motores para a viagem de fuga, em direção ao Sul do país. Um furo!
Corria o dia 31 de março e as notícias eram desencontradas. Telefone era um luxo, e celular, um sonho. Recebo a informação de que o Almirante Cândido Aragão bombardearia o Palácio Guanabara, onde se encontrava o governador Carlos Lacerda, peça essencial do movimento. Alguém me disse que os tanques dos fuzileiros navais já se encontravam na Rua Pinheiro Machado, procurando chegar ao Palácio Guanabara. Não tive alternativa. Peguei uma dupla de repórteres, Odacir Soares (depois senador) e Alberto Jacob, e determinei que fossem de qualquer maneira para o front. Como bons profissionais, alcançaram o objetivo e se posicionaram dentro do Palácio, registrando e fotografando todos aqueles movimentos.
Acontece que eles entraram, mas não podiam sair. Tivemos comunicação via telefone. Odacir me faz um apelo:
- Mande sanduíches. Se não chegarem, vamos morrer de fome. Vamos passar a noite aqui!
As providências foram imediatas. Preparamos um farnel e um motorista foi ao Palácio. Três horas depois, liga de novo o Odacir.
- Estamos morrendo de fome. Cadê os sanduíches?
Procuro contatos com todo o alto comando da Polícia Militar. Depois de muita conversa, a triste realidade:
- Os militares também tinham fome. Comeram tudo o que foi enviado.
Passei a noite na redação, dormindo de vez em quando em cima da mesa. Os repórteres se mantiveram firmes, apesar da fome. No dia 1º de abril, com a fuga das autoridades constituídas, o movimento revolucionário tornou-se vitorioso. Lacerda não foi bombardeado e nos reunimos na redação para fechar as revistas Fatos & Fotos e Manchete, com o material trazido por Odacir Soares, Alberto Jacob e o reforço de Carlos Leonam. Foi um sucesso de vendas e também a maior emoção que experimentei em 50 anos de vida jornalística.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) em 10/03/2004