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Retórica do diálogo e cultura do medo

 

As meninas de coletinhos de dinamite, que beijam os pais e explodem nos ônibus de Gaza, são comandadas por Bin Laden? Até onde o terrorismo é uma operação de guerrilha incessante e mundializada, fora dos grotões do mesmo comando e sua disciplina? Ou o que divisamos hoje é um gigantesco levante do inconsciente coletivo de nosso tempo, insubordinado com os preços do progresso a todo custo e a perda da alma de suas coletividades? Vamos ou não, afinal, entrar nas novas guerras de 100 anos, como prega o Salão Oval, diante da "cultura do medo", e de um mundo a perigo, de que as explosões de Madrid, ano passado, ou dos ônibus de Londres, nesses últimos meses, demonstram a permanência múltipla e generalizada? E como ignorar, nas montanhas do Paquistão o culto a Mohamed Ata, e a fotografia da sua passagem desafiante pelas roletas do aeroporto de Boston, a caminho da derrubada do World Trade Center?


Estas e outras perspectivas surgiram no primeiro diálogo para a aliança das civilizações, realizado em fins de novembro, em Majorca, no mandato expresso de Kofi Annan, juntando 20 interlocutores de todo o globo. Reuniam-se vozes islâmicas, como ocidentais, Mohamed Khatami, ex-presidente do Irã, como Federico Mayor, religiosos e scholars, o Prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu e Karen Armstrong, talvez a melhor scholar do Islam no Ocidente, Enrique Iglesias, ex-presidente do Banco Interamericano, e Hubert Védrine, ex-ministro do Exterior da França, a Emireza do Qatar, e Salei el Dim, presidente da Biblioteca de Alexandria, Mehmet Aydin, ministro dos Cultos da Turquia. Como começar, a que audiência se dirigir, e de que forma, na escolha certa das vozes, pode-se pensar num discurso que não repita o óbvio, e ganhe ainda audiência internacional empedernida à mesma mensgem que, afinal, se transforma em justificação pomposa do atual status quo?


O problema começa pela própria correção dos estereótipos, das frases feitas no repetir as litanias na condenação do terrorismo, e na busca de um consenso automático e inócuo, de repúdio à série de abates anônimos da população mundial, para protestar contra um Ocidente tornado às cruzadas, e visto, pelo mundo islâmico, como possuído do mesmo fundamentalismo que levou a violência desabrida de Bin Laden?


O que cala de imediato é o quanto, para falar-se sem arrogância sobre a "Aliança das Civilizações", há que interrogar-se sobre as condições mesmas do diálogo que as precede. E atentar à massa de preconceitos que nasce e aduba o universo da suspeita que se transformou em imperativo de sobrevivência, para os americanos, segundo George Bush. Se há "eixos do mal", aos mesmos correspondem também, do lado de cá, ao enrijecimento dos horizontes mundiais, perdendo a noção de alteridade, senão de respeito ao outro para se acreditar ainda na convivência plural.


Nada mais distante do cenário de 2005 do que o avanço da "cultura da paz" que tanto deve a Federico Mayor, hoje co-presidente da "Aliança", e à facilidade com que se bate o martelo sobre o universal dos valores do nosso tempo, ou sua ideologia defensiva das novas lógicas hegemônicas internacionais. Ninguém discutirá o extremo do terrorismo, nascido sobre o recomeço dos Jihads, na pós-modernidade, mas torna-se fundamental, como salientou John Esposito, reabrir-se uma visão larga e aberta ao que seja o "mundo islâmico" e falar-se não apenas à lideranças políticas e sim às universitárias e intelectuais, a reforçar-se o convívio dos campi americanos praticamente congelados desde a queda do World Trade Center. Mas o que conta, para valer, na volta ao diálogo, - e o salientou Desmond Tutu - é o reforço de prevalência dos Direitos Humanos, a partir do próprio "Estado de Direito", deixado de lado pela nova doutrina da segurança mundial do Ocidente. E, sobretudo, das ações peremptivas, para destruir, na raiz, os perigos de agressão a este universo, visto, a partir do Primeiro Mundo, como a sede da "civilização" e seus valores.


A chegar-se, um dia, a "Aliança" esperada pela ONU passa-se pela verdadeira globalização, que exija uma "reciprocidade de perspectivas" e não force o Islã à guerrilha da diferença. Mesmo porque, a se falar nos Direitos Humanos na garantia da vida ou da integridade física, há que reivindicar-se a defesa da especificidade das culturas, sem o que a condição humana não se assegura, nem por ela o exercício das liberdades, do dissenso e da democracia que, como regime político, deve assegurar a sua vigência.


O que começa em Majorca se ampliará na próxima reunião de Doha, no Qatar, a 26 de fevereiro. E a bem do realismo do "que fazer" a Comissão de Alto Nível já remontou à denúncia da retórica do que seja o "Diálogo", a garantir condições de credibilidade para esta fala. E, sobretudo, a quem se deve dirigir de saída frente à disseminação do terrorismo, chegado aos assassinos adolescentes do Oriente Médio.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 23/12/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 23/12/2005