A questão do foro privilegiado continua no centro dos debates políticos, seja pelo temor que as denúncias dos executivos da empreiteira Odebrecht está provocando na classe política, seja pelas propostas de reduzir o alcance do que representa um privilégio para milhares de autoridades que só podem ser julgadas pelos tribunais superiores ou TRFs.
Levantamento realizado pelo projeto Supremo em Números, da FGV Direito Rio, divulgado pelo Globo, mostra que no Supremo Tribunal Federal (STF), 68% das ações prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a autoridade deixou o cargo nos últimos anos. A condenação ocorreu em apenas 0,74% dos casos.
A força-tarefa da Lava-Jato estima que cerca de 22 mil autoridades são contempladas pelo privilégio atualmente no país. O STF é responsável por julgar presidentes, ministros e parlamentares. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cabem os casos que envolvem governadores, membros de tribunais de contas e desembargadores dos Tribunais de Justiça.
Já os tribunais regionais federais julgam os membros do Ministério Público Federal e os juízes federais de primeira instância. Além disso, cada estado define os foros nas unidades da federação. Em geral, as constituições estaduais concedem o benefício a prefeitos, juízes e promotores do Ministério Público Estadual (MPE).
Na sequência de iniciativas para neutralizar as ações de combate à corrupção, a mais recente foi do senador Romero Jucá que, fazendo jus ao que disse em conversa gravada com o ex-senador Sérgio Machado, tentou mais uma vez “estancar a sangria” da Lava Jato. Ele quis blindar os parlamentares que estão na linha de sucessão da presidência da República, isto é, os presidentes da Câmara e do Senado, de processos referentes a crimes cometidos antes de assumirem a função, como acontece com o presidente da República.
Rejeitada pelos próprios supostos beneficiários, a emenda constitucional foi parar na lixeira da História. Contrariamente, surgiu no Supremo Tribunal Federal uma idéia que, em vez de ampliar, reduz os privilégios do foro especial. O ministro Luis Roberto Barroso, ao relatar processo contra um prefeito, aproveitou para sugerir que o plenário do STF analise a restrição do foro privilegiado apenas para os crimes cometidos no cargo, e em em razão do cargo.
Para o ministro Barroso, o caso revela a “disfuncionalidade prática do regime de foro privilegiado, potencializado pela atual interpretação constitucional ampliativa acerca de sua aplicação”. Ele diz que “o sistema é feito para não funcionar” e entre nós se tornou “uma perversão da Justiça”. No presente caso, o prefeito de Cabo Frio, terminado o mandato, foi eleito deputado, e depois prefeito novamente, e as diversas “subidas e descidas” de competência de foro – do TRE para o STF e de volta ao TRE - “estão prestes a gerar a prescrição pela pena provável, de modo a frustrar a realização da justiça, em caso de eventual condenação”.
No seu despacho, Barroso lembra que tramita atualmente perante o Supremo Tribunal Federal um número próximo a 500 processos contra parlamentares (357 inquéritos e 103 ações penais), e com as delações da Odebrecht “este número vai aumentar expressivamente”. O prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 565 dias, enquanto o de um juiz de 1o grau é de menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples.
A impunidade dos políticos decorrente dessa demora pode desmoralizar não apenas o STF, mas a própria Operação Lava Jato. Barroso pede que o plenário do Supremo trate do assunto, pois vê “a necessidade imperativa de revisão do sistema”. Ele se preocupa com o desprestígio que pode atingir o Supremo, minando sua autoridade.
Embora saiba que qualquer mudança deve ser feita pelo Congresso, através de emenda constitucional, Barroso diz que “é possível reduzir o problema representado pelo foro privilegiado mediante uma interpretação restritiva do seu sentido e alcance, com base no princípio republicano e no princípio da igualdade”.
A proposta do ministro Luis Roberto Barroso é bem mais palatável do que a defendida pelo decano do STF em entrevista reproduzida no despacho. Celso de Mello diz que, por ele, o foro privilegiado acabaria de vez, ou então seria mantido apenas para os presidentes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas o decano lança a tese agora defendida por Barroso: antes que o Congresso decida sobre o tema, o Supremo poderia fazer uma interpretação restritiva do foro privilegiado.