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Relendo Machado

 

Ele só escreveu sobre a sua aldeia, o Rio, mas atingiu não apenas o universal como o eterno


BEM, O fim de semana me prendeu em casa. Gosto desses dias, sem compromisso com nada e ninguém. Fui às estantes lá de casa e olhei, também sem compromisso, as lombadas todas. Gradualmente, fui me fixando em velhos livros que me acompanham há muito tempo, desde as minhas primeiras estantes. Sim, lá estavam elas, as obras completas de Machado de Assis, que não visito há muito.


Alguns daqueles livros já foram lidos e relidos, e regularmente consultados para fins de pesquisa ou encomenda de trabalho. Agora não: a disponibilidade era integral, a minha e a dos livros.


Fechei os olhos para escolher ao acaso; a mão trouxe as "Memórias Póstumas de Brás Cubas", seguramente o livro de Machado que mais li e reli, depois de "Dom Casmurro". Deitei-me no sofá e comecei pela famosa dedicatória ao verme, que por primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver.


Os capítulos são espaçados graficamente, a leitura é fácil, facílima em alguns casos, como no trecho em que o autor explica por que e como não chegou a ministro de Estado: são apenas quatro linhas de reticências, sem nenhuma palavra escrita.


Há também o extraordinário diálogo entre Virgilia e Brás Cubas, em que só existem reticências e pontos de interrogação e exclamação. No entanto, nunca houve diálogo mais explícito (de sexo implícito, para ser bem explícito) do que essa maravilha da criação. E fui revisitando lugares e sombras, até o final igualmente famoso: "não tive filhos, não transmiti para nenhuma outra criatura o legado de nossa miséria".


Do Brás Cubas pulei para o "Quincas Borba", seguimento natural do primeiro. Foi como se ouvisse uma ópera, da qual conhecesse passagens de cor. Praticamente, de duas em duas páginas, esbarrava nos trechos que havia decorado nas velhas antologias de antigamente; a cena de Rubião olhando as estrelas, o empregado espanhol chamando Quincas Borba de "perro del infierno", os pensamentos do cão, a "memória das pancadas", a teoria do campo de batatas, da qual resultou a divisa "ao vencedor as batatas!" -que rola em vários trechos da narrativa, podendo até servir de epígrafe não apenas ao "Quincas Borba" isoladamente, mas a toda a obra maior de Machado de Assis.


Enfim, quando dei por mim, já a luz da segunda-feira desenhava o contorno da Lagoa em frente à minha varanda e eu descobria que havia varado a tarde e a noite na leitura de um livro que, lido pela quarta ou quinta vez, eu podia considerar meu. Meu mesmo, não em termos de glória ou façanha, mas no sentido de propriedade, de adequação, tão meu como a minha vida, meus fracassos e lutas, meu tempo que está passando, meu gosto, minha carne, minhas lágrimas.


Evidente que Machado não vale nada como autor de enredos: suas histórias são sempre as mesmas, e mesmas as intrigas, o ambiente, até mesmo os personagens.


Ele se tornou o nosso maior escritor não por meio dos enredos, mas pela maneira como conduziu a única história que pretendeu contar: a da miséria humana em seu todo o seu esplendor e decadência.


Tchecov dizia: "escreva sobre a tua aldeia e descreverás o mundo". Machado escreveu apenas sobre a sua aldeia, o Rio de seu tempo, mas atingiu não apenas o universal, mas o eterno. A loucura de Rubião é a loucura de todos nós, quando estamos suficientemente lúcidos.Moral da história: perguntei uma vez a Francisco Mignone qual era o seu compositor preferido. Ele respondeu que, aos 20 anos, era Bach; aos 40, era Beethoven; aos 60, era Puccini. Entendi o que ele queria dizer: na idade madura, não devia nada a ninguém e podia expressar o que realmente sentia.


Cito esse episódio em causa própria e a respeito de Machado: aos 20 anos, meu romance preferido era "Dom Casmurro"; aos 40, passei a preferir "Brás Cubas". Na idade madura, o meu preferido é "Quincas Borba". Gosto, sobretudo, do cão que também se chamava Quincas Borba. É um dos melhores personagens da novelística internacional.Quando tomei posse na Academia Brasileira de Letras, iniciei e terminei o meu discurso com um pensamento que Machado colocou na cabeça do cão: "a vida não é completamente boa nem completamente má". E Machado acrescenta que isso é um pensamento de um cão, "uma poeira de idéias".


E tem aquela maravilha do jornalista Camacho, que é muito atual nos tempos atuais: "Cada partido tem seus díscolos e sicofantas".


Folha de S. Paulo (SP) 3/11/2006