COMO TODOS , nasci sem ser consultado. Reconheço, preliminarmente, que de nada adiantaria uma consulta antes de cada nascimento, pois além dela, seria necessário municiar o cara com informações. Digamos: o feto está sendo fecundado e alguma entidade superior exibe para ele o filme do que vai ser sua vida lá fora.
Aí, sim, a consulta teria sentido. O sujeito nasceria (ou se recusaria a nascer) sabendo o que de bom ou de ruim o espera. Se quisesse quebrar a cara irremediavelmente e para sempre, a fim de ter o direito de gozar duas ou três coisas boas da vida, fosse-lhe feita a vontade.
Felizmente, esse processo não foi adotado pela natureza. Todos nascemos naquela base, a da profunda ignorância do que nos espera. E quando abrimos os olhos já somos homens, mulheres, negros, malaios, esquimós, fortes, fracos, burros, gênios, moramos em tal país e não em outro, formamos e pertencemos a um conjunto de conceitos, preconceitos, raça, religião, mais tarde somos condicionados a escolher um clube de futebol, uma escola de samba ou coisa equivalente.
Resumindo: já nascemos prontos, condenados e derrotados. O resto que se consegue é lucro. Vai daí, se tivesse de renascer e houvesse um sistema de saber o que me esperava, eu toparia nascer de novo, fazendo uma única exigência. Não pediria a glória e o poder deste mundo, nem a bem-aventurança do outro. Em linhas gerais, topava ser tudo o que fui, cometendo os mesmos erros, as mesmas misérias, as mesmas quebrações de cara. Somente um troço me incomoda e dele gostaria de ficar livre: a mania de embarcar em canoas furadas. Mas não me foi dado o direito de mudar a regra do jogo, o jeito é ir em frente, sabendo que nada me espera de bom e que nada de bom espero dos outros.
Antes que pensem em pouca vergonha ou nefandos crimes que gostaria de praticar, quero ser claro: nasci sem lados. Sou completamente incapaz de torcer aberta e descaradamente por uma causa, um símbolo, uma cruzada. Olho o mundo neutramente, achando que tudo mais ou menos se equivale.
Senti isso, de forma consciente, num jogo de futebol, quando ainda os freqüentava, ao lado de um amigo que era flamenguista desvairado, desses que vão para o Maracanã com camisa do clube, faixa na testa, bandeira e um estoque de foguetes. Era um Fla x Flu antigo e eu torcia a meu modo, pelo Fluminense. No fim da partida, um zero a zero incolor, que não deixou memória, meu amigo suava aos bagos, achando que o time dele devia ter vencido de goleada.
Eu o consolei: "Fique tranqüilo, o Flamengo está ótimo, olha só o Dequinha, está fazendo uma partida soberba". O amigo levou um susto: "Mas como? Você reparou no Dequinha, num adversário?". -"Evidente, foi o melhor homem em campo, valeu a pena ter vindo ao jogo só pela exibição dele!"
O meu amigo amassou o centésimo cigarro no áspero cimento da arquibancada do Estádio Mário Filho e estourou: "Não sei como você, torcendo pelo Fluminense, pode reparar em quem está jogando bem ou mal no time contrário. Para mim, só vejo o meu time. Tirante os 11 que vestem a minha camisa, todos os demais são uns filhos da puta que só atrapalham, e eu quero que vão para o inferno, são uns pernas de pau, desleais, assassinos, facínoras, deviam ser expulsos de campo porque não deixaram o meu time vencer".
Este desimportante lance de minha desimportante biografia é comprido e centrado num setor secundário da lide humana. Mas filosoficamente, se desprezarmos a identidade e buscarmos a analogia, passarmos para a política, a religião, a cultura, o tipo de samba ou de comida que gostamos, o modo que escolhemos para caminhar pela vida, aí teremos o perfil de nossas desgraças certas e de nossas incertas esperanças.
Uma pergunta que até hoje não respondi a mim mesmo: por que diabo meu pai torcia pelo São Cristóvão? Por que meu tio Joaquim Pinto Montenegro era teosofista? Querendo ser maquinista da Central e mais tarde querendo ser padre, por que acabei jornalista contra a vontade?
Se antes de nascer tivesse noção do que me esperava, desconfio que acabaria nascendo, mesmo sem a esperança de mudar a regra do jogo.
Folha de S. Paulo (SP) 8/8/2008