Como previsto, já arrefece o mais recente debate sobre corrupção. Ainda se discute, sem muito entusiasmo, a absolvição de uma deputada que foi filmada recebendo um dinheirinho suspeito, mas isso aconteceu antes de ela ser deputada, de maneira que não vale. Além da forte tendência de os parlamentares não punirem os seus pares, havia o risco do precedente. Não somente o voto é indecentemente secreto nesses casos, como o precedente poderia expor os pescoços de vários outros deputados. O que o deputado faz enquanto não é deputado não tem importância, mesmo que ele seja tesoureiro dos ladrões de Ali Babá.
Aliás, me antecipando um pouco ao que pretendo propor, me veio logo uma ideia prática para acertar de vez esse negócio de deputado cometendo crimes durante o exercício do mandato. Às vezes – e lembro que errar é humano – o sujeito comete esses crimezinhos distraído. Esquece, em perfeita boa-fé, que exerce um mandato parlamentar e aí perpetra a falcatrua. Fica muito chato para ele, se ele for flagrado, e seus atos podem sempre vir à tona, expostos pela imprensa impatriótica. Não é justo submeter o deputado a essa tensão permanente, afinal de contas, ele é gente como nós.
Minha ideia, como, modéstia à parte, costumam ser as grandes ideias, é muito simples: os deputados usariam uniforme. Não daria muito trabalho contratar (com dispensa de licitação, dada a urgência do projeto), um estúdio de alta-costura francês ou italiano, ou ambos, para desenhar esse uniforme. Imagino que seriam mais de um: o de trabalho, usado só excepcionalmente, o de gala, o de visitar eleitores e assim por diante. Enquanto estiver de uniforme, o deputado é responsabilizado pelos seus atos ilícitos ou indecorosos. Mas, se estiver à paisana, não se encontra no exercício do mandato e, por tanto, pode fazer o que quiser. E depois, é claro, exigir seu foro especial para o julgamento. Surgirão alguns problemas de implantação, mas logo serão superados e se firmará jurisprudência sobre se estará uniformizado o deputado que tenha momentaneamente tirado o paletó para melhor acomodar o bolo de dinheiro desviado, ou a deputada que, confrontada por semelhante problema de espaço, levante a saia por um instante fugaz. (Mais de dez segundos talvez configurem um adicional de conduta indecorosa.)
Mas isso é um mero detalhe, uma providência que melhor seria avaliada no conjunto de uma reforma séria, que levasse em conta nossas características culturais e nossas tradições. Já estamos cansados de ler e ouvir explicações sobre por que há tanta corrupção no Brasil, a começar pela afirmação de que Portugal só mandou para cá perigosos degredados, assim nos legando ancestrais da pior extração. Mas mesmo que isso fosse verdade, que dizer então da Austrália, que foi realmente colônia penal? Também não cola direito essa conversa sobre como corrupção e esbórnia com o dinheiro público existem em toda parte. Claro que existem, mas nunca, a não ser em sociedades politicamente atrasadas, nas proporções exuberantes que vemos aqui – e tudo sem punição de espécie alguma.
O que cola mesmo aqui são os ensinamentos de líderes como o ex-presidente (gozado, o “ex” enganchou aqui no teclado, quase não sai), que, em várias ocasiões, torceu o nariz para denúncias de corrupção e disse que aqui era assim mesmo, sempre tinha sido feito assim e não ia mudar a troco de nada. E assumia posturas coerentes com esse ponto de vista. O governo atual parecia que ia em outro caminho, mas não vai nem nada, até porque, segundo declaração da presidente que não entendi, mas deve ser por causa da profundidade do pensamento, isto aqui não é Roma antiga. De qualquer forma, o estabelecido e aceito é a boa a velha teia da corrupção em todos os níveis.
Contudo, quando se descobre mais um caso de corrupção, a vida republicana fica bagunçada, as coisas não andam, perde-se trabalho em investigações, gasta-se tempo prendendo e soltando gente e a imprensa, que só serve para atrapalhar, fica cobrando explicações, embora já saibamos que explicações serão: primeiro desmentidos e em seguida promessas de pronta e cabal investigação, com a consequente punição dos culpados. Não acontece nada e perdura essa situação monótona, que às vezes paralisa o País.
A realidade se se exibe diante de nós e não a vemos. Em lugar de querer suprimir nossas práticas seculares, que hoje tanto prosperam, por que não aproveitá-las em nosso favor? Creio que o estabelecimento do Fundo Nacional de Governabilidade Sustentável substituiria com ampla vantagem o atual sistema de barganhas e concessões.
Seria criado o auxílio-voto para os deputados que relutassem em votar com o governo. Não precisa nomeação, não precisa nada disso, basta sacar o auxílio-voto (resultado de cálculos complexos, conforme o caso) no Fundo e votar com a consciência e o bolso tranquilos. Os projetos andariam tranquilamente, todos continuariam a roubar como sempre roubaram, mas de forma construtiva e organizada, contribuindo para a economia e a paz política. Cursos de formação de quadrilha podiam ser oferecidos a todos e, dessa forma, as mutretas não seriam, em tantos casos, tão mal conduzidas. O brasileiro preocupado com o assunto já pode sonhar com uma corrupção moderna, dinâmica e geradora de empregos e renda. E não pensem que esqueci as famosas classes menos favorecidas, como se dizia antigamente. O mínimo que antevejo é o programa Fraude Fácil, em que qualquer um poderá habilitar-se ao exercício da boa corrupção, em seu campo de ação favorito. Acho que dá certo, é só testar. E ficar de olho, para não deixar que algum corrupto corrupto passe a mão no fundo todo, assim também não vale.
O Globo, 4/9/2011