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Receita para qualquer biografia

 

João Francisco Xavier da Silva, notável tribuno, ensaísta, diplomata, parlamentar, jornalista e dentista no início de sua carreira, nasceu em São Paulo, em 1914. Naquele mesmo ano, um estudante matou o arquiduque da Áustria em Sarajevo, ponto de partida para uma guerra que duraria quatro anos e, com a entrada dos Estados Unidos no conflito, iria se tornar mundial, envolvendo dois continentes e antecedendo alguns anos a Segunda Guerra Mundial, em 1939, que só terminaria quando explodiu a primeira bomba atômica em Hiroshima.


Aquele ano também foi notável pelo descobrimento de um elixir que tomou o nome de "914", ameaçando acabar com a sífilis que devastava populações inteiras nos países mais pobres. O século 20 mal começava e trazia em seu ventre velhos ressentimentos da França contra a Alemanha e vice-versa, desde que, em 1870, os alemães chegaram às cercanias de Paris e, derrotando as tropas do general Mac-Mahon, inspiraram um dos romances de Emile Zola, que se tornaria mais famoso do que já era com a defesa do capitão Alfred Dreyfus, injustamente acusado de ser espião da Alemanha, e que provocaria o movimento sionista bem-sucedido com a partilha da antiga Palestina, que criaria o Estado de Israel, em 1948.


Três anos após, em 1917, o regime czarista foi deposto na Rússia, instalando-se o primeiro Estado comunista sob a liderança de Lênin, o qual foi sucedido por um ex-seminarista, Joseph Stalin, que mandou assassinar seu rival Leon Trotski no México, país que seria a sede da Copa de 1970, que daria ao Brasil o título de tricampeão mundial, provocando euforia nacional apesar do truculento governo militar do general Médici, nascido no Rio Grande do Sul, onde também nasceria o cronista Luiz Fernando Verissimo e onde seria enterrado o presidente Getúlio Vargas, que se suicidara em 1954 após uma crise na política brasileira provocada por um atentado na rua Toneleros, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, bairro famoso pela sua praia e por uma canção de Alberto Ribeiro e João de Barro, interpretada pelo cantor Dick Farney e que seria de certa forma, segundo o especialista Ruy Castro, o embrião de um movimento musical chamado bossa nova.


Naquele mesmo ano, seria comemorado o quinto aniversário da morte de Machado de Assis, que, em 1897, com Joaquim Nabuco e Lúcio Mendonça, fundaria a Academia Brasileira de Letras, da qual faria parte, anos mais tarde, o jurista Ataulfo de Paiva, que daria nome à principal rua do Leblon, que então nem existia. Por espantosa coincidência, 1914 foi um ano em que houve enchentes no sul do Brasil e secas no nordeste do mesmo país, antecedendo de exatos 97 anos o ataque terrorista às torres do World Trade Center, em Nova York, que motivaria a posterior invasão do Iraque por uma coligação de países liderados pelo presidente George W. Bush, filho de um ex-presidente que, anos antes, também invadira o mesmíssimo Iraque, embora por outros motivos.


A paisagem física e moral de São Paulo, naquele distante 1914, já deixara de ser bucólica e se tornara industrial com a chegada de um italiano que trazia na bagagem uma espécie de chaleira na qual derreteria toucinho de porco, produzindo banha que concorreria com o artigo importado que chegava ao Brasil rançoso, sem valores calóricos e sem sais minerais.


Documentos recentemente descobertos na Torre do Tombo, em Lisboa, revelaram que em 1914 já se fabricava, na Holanda e em vizinhos países bálticos, um tipo de abridor de latas inspirado num desenho de Leonardo da Vinci, o mesmo que pintara a Mona Lisa que hoje se encontra no Museu do Louvre, em Paris, cidade onde está enterrada uma vara de platina que serve de modelo universal para o sistema métrico adotado pela maioria dos países, menos pela Inglaterra, que se recusa a medir distâncias e alturas por qualquer outro método que não seja o decimal. A vara de platina enterrada em Paris equivale à décima milionésima parte de um quarto de um meridiano terrestre e, apesar de enterrada, é vigiada dia e noite por sofisticados sensores a fim de evitar que seja roubada -e aí haveria o metro para cristãos e muçulmanos, para heteros e homossexuais, para a Fundação Getúlio Vargas, para as maiorias e minorias, para cada manual de redação adotado nos diferentes jornais do mundo.


Denso de acontecimentos universais e localizados, 1914 antecedeu em alguns anos as conquistas mais fantásticas do século 20: o radar, a penicilina, as cervejas em lata, a pílula anticoncepcional que acabaria com o coito interfemural então vigorante, os elevadores inteligentes, os burros que acreditam em disco voador, o picadinho de carne que tomou o nome de estrogonofe, os videocassetes de quatro cabeças.


Como se não bastasse, 1914 foi um ano em que, por coincidência demográfica, nasceram todos aqueles que, no final do século, em 2000, tinham 86 anos, excetuando-se aqueles que, por um motivo ou outro, foram ficando pelo caminho.


Tal não aconteceria com João Francisco Xavier da Silva, que vamos encontrar aos oito anos de idade fazendo, com edificante piedade, a primeira e última comunhão na Matriz de...




Folha de São Paulo (São Paulo) 09/12/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 09/12/2005