“A sede da alma está na memória”, dizia Santo Agostinho. Esta afirmação explica a praxe que norteia os discursos de posse na Academia Brasileira de Letras. Com efeito, cabe a um novo acadêmico, ao empossar-se, resgatar a memória e interpretar o espírito de sua cadeira analisando o significado cultural da obra e da ação daqueles que anteriormente a ocuparam. Neste contexto, a regra é o destaque a ser dado à trajetória intelectual do antecessor imediato e ao relacionamento que teve com as atividades da instituição, fundada em 1897. Foi isso o que me empenhei em fazer no último dia 1º de dezembro, ao assumir, na Casa de Machado de Assis, a cadeira 14, na sucessão de Miguel Reale.
Meus antecessores na cadeira 14 foram professores com vocação de pensadores. Professores foram o acadêmico-fundador Clóvis Beviláqua (1859-1944) e seus sucessores Carneiro Leão (1887-1966), Fernando de Azevedo (1894-1974) e Miguel Reale (1910-2006).
Clóvis e Reale, intelectuais de múltiplas facetas, notabilizaram-se como juristas que inovaram o Direito brasileiro. Carneiro Leão e Fernando de Azevedo destacaram-se como sociólogos e educadores empenhados em fazer da educação uma política pública voltada para superar as desigualdades da sociedade brasileira. Os quatro ocupantes da cadeira 14, como se percebe, foram escolhidos segundo o critério preconizado por Joaquim Nabuco, que entendia que a Academia deveria ter “uma esfera mais lata do que a literatura exclusivamente literária”, contemplando também “as superioridades do País”.
Na análise da trajetória de Reale evoquei um aforismo de Fernando Pessoa - “Sê plural como o universo” - para apontar que meu antecessor, valendo-se da sua poderosa inteligência e da sua ampla e aprofundada cultura, seguiu à risca essa máxima do grande poeta. Daí a abrangência de uma obra original que cobre vários campos: a Filosofia; a Filosofia do Direito, na sua especificidade própria; o Direito, em todos os seus quadrantes; a Teoria Política, a História das Idéias, a História do Pensamento brasileiro; a memorialística; a poesia.
Um dos desdobramentos desta pluralidade é, no seu percurso, o vínculo com os objetivos básicos da Academia - a defesa da língua e o empenhado interesse na literatura brasileira e na cultura nacional.
A defesa da língua é, para Reale, um imperativo filosófico. Resulta da sua convicção de que o idioma é o solo da cultura e que a nossa língua portuguesa, com suas peculiaridades e seu potencial, condiciona o nosso ser pessoal e a nossa própria capacidade de pensar.
O empenhado interesse na literatura brasileira e na cultura nacional em Miguel Reale é uma expressão do seu culturalismo filosófico, vale dizer, da importância atribuída ao mundo da vida em comum, historicamente feito pelos homens, que não é redutível ao mundo da natureza. Para ele, cultura brasileira é o conjunto de conhecimentos e valorações convertido em patrimônio intelectual da gente brasileira. Provém da vivência e da convivência expressas em nossa língua, que por isso enseja a autoconsciência da especificidade no diálogo com outras culturas e dá margem a distintas formas de criação literária e estilos de pensamento.
Na discussão do processo cultural, Reale realça a importância não apenas dos focos irradiadores das influências recebidas, mas também daquilo que condicionou determinada receptividade. Daí o valor outorgado ao “sentido” das recepções filosóficas, artísticas e literárias para desvendar as raízes e o desenvolvimento da cultura brasileira. Foi nesta linha que se dedicou à pesquisa e ao resgate da memória do pensamento brasileiro, no qual identificou características próprias. É neste horizonte que escreveu sobre inúmeros autores brasileiros e dialogou com as obras dos acadêmicos do passado e do presente. Um exemplo paradigmático desta postura, que o vincula à Academia Brasileira de Letras, é seu livro de 1982 sobre Machado de Assis.
Machado é nosso clássico. Alcançou o patamar da permanência pois, simultaneamente, é um sutil intérprete do seu tempo; provoca distintas interpretações da sua obra, no Brasil e no mundo, e é lido de geração em geração porque na criativa polivalência do seu texto literário cada época e seus distintos públicos nele encontram a fruição de suas necessidades de expressão. É por isso que o fundador e primeiro presidente da Academia vem instigando trabalhos de sucessivas gerações de acadêmicos, os últimos sendo os de Alfredo Bosi e Sérgio Paulo Rouanet. Assim, não foi por acaso que Reale dedicou o seu livro aos confrades acadêmicos.
O ângulo com que se preocupou Reale foi o da análise do que a inquietação filosófica representou na obra literária de Machado. O livro de Reale é o de um leitor que, com desvelo, freqüentou toda a obra de Machado, como indica a antologia filosófica por ele preparada, que integra seu livro. É o de um pensador aberto que, como era do seu feitio, dialogou com os trabalhos dos que o antecederam no trato do tema. É, mais especificamente, o de um estudioso que mostrou o sentido que teve, na obra de Machado, o influxo de suas múltiplas leituras de cunho filosófico. Este sentido está contido na tessitura da sua obra - e é um componente do porquê Machado é um clássico da literatura brasileira. No entanto, vai além disso, pois, como conclui com acuidade Miguel Reale, é ao nosso bruxo do Cosme Velho que efetivamente se deve “o fermento crítico injetado no cerne da cultura brasileira”.
Unir pensamento e ação instigado por um fermento crítico foi o intento permanente de mestre Reale, que se casava com sua maneira de ser e estar no mundo. É disso que se lembram os leitores dos seus artigos quinzenais no Estado, que escreveu até os últimos dias de sua vida. Nesses artigos, Reale, no kantiano “uso público da razão”, pensou os acontecimentos do Brasil e da vida internacional, exercendo, com superioridade, um magistério de reflexão de alto nível na vida contemporânea brasileira que faz muita falta.
O Estado de S. Paulo (SP) 17/12/2006