Não há como estranhar a repercussão de qualquer trabalho, literário ou não, que seja feito a respeito da vida e da obra do padre AntônioVieira. Mesmo não tendo nascido no Brasil, ele aqui desenvolveu ações tão intensas - e por muitos anos - que se tornou uma das figuras estelares da nossa cultura.
De obra vastíssima, com intensa atuação política, conselheiro e legado especial do rei de Portugal, D. João IV, Vieira foi personagem de debates em Paris, Amsterdã e Haia, a respeito dos interesses lusitanos no comércio internacional. Daí pode ter advindo a sua defesa dos comerciantes judeus da época, grandes financistas, que poderiam tirar Portugal da crise, se lhes fossem dadas condições dignas de sobrevivência, mesmo que nas colônias espalhadas pelo mundo, a principal das quais era o Brasil.
No livro de Evaldo Cabral de Melo, intitulado O negócio do Brasil, é possível entender com clareza os acontecimentos políticos, comerciais e militares da época que sucedeu à presença holandesa entre nós. Vieira é lembrado por suas cartas e o ''papel forte'' exercido. Como afirmou o escritor Vasco Mariz, na conferência sobre Vieira (Carta Mensal, maio de 2004), este, com o imenso prestígio que desfrutava junto ao rei, passou a advogar a causa dos cristãos-novos. O governo deixaria os seus bens livres do fisco e seria decretada a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. Essas facilidades foram abortadas pela interferência da Inquisição. E também pela reação à idéia de entregar o Nordeste aos holandeses, em busca da paz com Portugal. O desagrado aos inquisidores custou ao religioso dois anos de prisão, de 1665 a 1667. Voltou a pregar na Capela Real, em virtude da comiseração da rainha.
Com todas essas idéias formigando, pensamos na realização do livro Padre Antônio Vieira e os judeus (Editora Imago), há pouco lançado no Rio de Janeiro. A idéia cristalizou-se em 1989, quando, na sinagoga da Associação Religiosa Israelita, o poeta Augusto Frederico Schmidt realizou aplaudida conferência, num brilhante improviso. A conversa posterior com a acadêmica Rachel de Queiroz levou-nos à obra, brilhantemente prefaciada pelo escritor Antônio Carlos Villaça. São suas palavras: ''Imenso Vieira. Figura absolutamente genial. De uma flexibilidade, de uma concretude, de um senso do real que faz dele um grande político. Foi três coisas: pregador, moralista e político.''
O livro foi recebido de forma simpática pela crítica. Segundo o acadêmico Antônio Olinto, ''ele aclara momentos de uma vida que foi uma luta contínua contra a Inquisição, contra a escravidão de negros e de índios, contra a burrice geral dos governantes, contra os campos de concentração antecipados em que foi preso... Vieira enfrentou a oposição dos poderosos de então, a incompreensão e o ódio de parte da população média, ao se colocar abertamente na linha de defesa da nação de Israel, dos cristãos-novos, dos judeus, enfim.''
O século 17 foi um período emblemático para o Brasil. Vieira colocou sempre a sua poderosa eloqüência a serviço do que, na época, se compreendia como direito à liberdade. Viveu muitos anos, mas, ao final, crivado de doenças. Apesar das dificuldades que enfrentou, com a mão quebrada e quase cego, conseguiu ditar várias cartas a amigos de Portugal, dotado ainda de combatividade. A carta de 31 de julho de 1694, uma espécie de carta de despedida, é bastante reveladora: ''E para que o despacho deste forçado memorial não pareça gênero de ingratidão da minha parte, senão contrato útil de ambas, e muito digno de aceitação, sirva-se V. Exa. de considerar que, se me falta uma mão para escrever, me ficam duas mais livres para levantar ao Céu, e encomendar a Deus os mesmos a quem não escrevo, com muito maior correspondência do meu agradecimento, porque uma carta em cada frota é memória de uma vez cada ano, e as de oração de todas as horas são lembranças de muitas vezes de cada dia...''
Um dos prazeres intelectuais que mais cultivamos é trocar correspondência com a grande escritora Anita Novinsky. Ela está preparando um livro com inéditas revelações, sob o título Uma nova leitura sobre o padre Antônio Vieira. Antes, a professora da Universidade de São Paulo elaborou três artigos sobre o tema, o que levou a sua inspiração à idéia de criar o Museu da Intolerância, à semelhança do que existe em Los Angeles. Será uma extensão do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, já em funcionamento na Universidade de São Paulo.
Vale referir ainda que Vieira, sobretudo nos seus últimos anos, viveu cercado de judaizantes e cristãos-novos. Na sua obra-prima, intitulada Clavis Prophetarum, enfatiza os sonhos de reconciliação entre judeus e cristãos. Aprofunda, para isso, suas leituras sobre as Sagradas Escrituras, na esperança de que, juntando a Lei Antiga e a Lei Nova, haja um só rebanho e um só pastor.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 05/01/2005