Foi um quarto de século de grande amizade. Talvez mais do que isso, na relação afetiva que me uniu à extraordinária figura da escritora e cronista Rachel de Queiroz. Quando a conheci, já era famosa. Ocupava com brilho a última página da revista "O Cruzeiro", que vendia mais de 500 mil exemplares semanalmente. E de vez em quando, sem pausa e sem pressa, como era o seu estilo, lançava um romance de sucesso, de tantos que marcaram a sua vida de campeã.
Ainda estou com os ouvidos aquecidos pela Banda dos Fuzileiros Navais. O luto espalhou-se por todo o cemitério São João Baptista. Pensei em tantas coisas, até mesmo naquele que terá sido o livro da sua preferência. Com uma ponta de ironia, Rachel costumava menosprezar todos eles. "Não gosto dos meus livros", dizia. E encerrava a conversa, sem permitir que o interlocutor indagasse: "Não há exceção nem para O Quinze ou o Memorial de Maria Moura, este com nítidas passagens autobiográficas?" Ela sorria e desconversava. Inteligentíssima, não teria como sustentar esse argumento, pois não se baseava na realidade das vendas, sempre de muito sucesso.
Perdeu-se o convívio de Rachel de Queiroz. As visitas, os telefonemas constantes, as comemorações do Ano-Novo judaico, a grande presença na Academia Brasileira de Letras, onde testemunhei durante muitos anos sua especial estima pelo presidente Austregésilo de Athayde. Conversavam horas, como irmãos, trocando idéias por um assunto que lhes era familiar e prazeroso: a vida e a expansão da Academia. Filha de ambos.
Quando se chora a morte de um ente querido, nem sempre é possível expressar tudo o que está em nosso coração. O 4 de novembro foi triste, tristíssimo, desde as 6 horas da manhã, quando a rainha das escritoras brasileiras cerrou os olhos pela vez derradeira. Uma vida de 92 anos, cheia de lutas e glórias sem-fim, a começar pela primeira profissão: o sacrificado magistério. Ela se foi, mansamente, sem deixar ao afilhado a honra de batizar o seu último livro: "Noites de luar."
Rachel de um grande amor pelo Nordeste, pela sua fazenda "Não me deixes", pela filha que só viveu 18 meses, pelo marido Oyama de Macedo Carvalho, falecido em 1961, mas jamais esquecido, sobretudo nas últimas semanas. Passou para a outra vida, agora para sempre ao seu lado, no jazigo da família.
Rachel dos sentimentos múltiplos pela sua querida Maria Luíza, meio irmã, meio filha, parceira de todos os seus projetos, literários ou não.
Rachel de estilo forte, proprietária de uma escola literária insubstituível, das discussões em torno do seu amor ao povo de Israel, eis que se considerava, com muito orgulho, "uma velha senhora sionista". Neste momento, precisamente, um vento especial há de estar balançando as folhas das árvores do lindo bosque que tem o seu nome, em Tel Aviv. Mais uma prova da sua imortalidade.
Rachel de Queiroz, que me recepcionou na Casa de Machado de Assis, não nos deixou. Ela aqui permanecerá, representada pela família, pelas obras, pelos amigos e ainda pelos milhões de admiradores, conquistados graças ao seu estilo literário e à maneira profundamente humana e bastante pessoal com que soube marcar de forma indelével a sua passagem entre nós. Descanse em paz, querida amiga.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro -RJ) em 17/11/2003