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Quem tem medo de literatura?

 

Nunca usei o adjetivo “abjeto”. Mas foi o que me ocorreu quando vi um interrogado, numa CPI no Congresso, acusar uma jornalista de querer trocar sexo por falso testemunho. Somou-se a “inadmissível”, adjetivo que tem me ocorrido muito ultimamente, sempre que constato não haver limites para o desejo das autoridades de impor a mais completa ignorância ao maior número possível de pessoas. Já tivemos um presidente que comparava leitura a exercício em esteira ergométrica — todo mundo diz que faz bem, mas é insuportável. Agora temos um que reclama que livro é um montão de amontoado de muita coisa escrita.

Para agradá-lo, bajuladores no governo de Rondônia mandaram recolher muitos desses “objetos perniciosos” do lugar exato em que devem estar — as bibliotecas escolares. Produziram uma lista de clássicos literários para ninguém botar defeito. Recuaram diante da grita geral e dos protestos de instituições como a Academia Brasileira de Letras. Mas é apenas um dos episódios mais recentes desse tipo de arbítrio, entre tantos.

É inevitável levantar a questão. Além do óbvio desejo de manter a população na ignorância para tentar se perpetuar no poder, por que esse pessoal tem tanto medo da literatura? Talvez, antes de mais nada, temam o que não conhecem nem conseguem entender, porque não tem um significado imediato e rasteiro. Procuram espelho e reflexo de si próprios mas encontram janela e temas de reflexão, abertura para a diferença e a diversidade, expansão para o infinito. Querem palavras de ordem e encontram desordem de palavras — fecundas, ricas de sentidos, exigindo elaboração. Buscam slogans, esbarram em enigmas. Querem receitas, não desafios. Perigo. Pensar pode dar vertigem.

Para a romancista Iris Murdoch, tiranos perseguem a arte porque lhes interessa enganar, enquanto a arte desmascara. Pode ser isso. Ou só um caso primitivo de pavor do desconhecido. Ou como disse Millôr, um dos quase proibidos em Rondônia: é que no Brasil os ratos põem a culpa no queijo.

O Globo, 17/02/2020