Preciso ir a Copacabana, tomo a direção do túnel velho. Passo pela Real Grandeza, olho as capelas do cemitério São João Batista. Enfadados, alguns homens espiam a rua, dando as costas para seus respectivos defuntos.
Mais dia menos dia, serei eu que ali estarei, não à janela, mas finalmente quietado. O que tinha de fazer em Copacabana? Pagar umas contas. E depois? Bem, depois ir para o trabalho, voltar para casa, pagar novas contas, enfrentar novos trabalhos, até que chegasse a minha vez. Por que não queimava etapas ficando logo ali?
Pensei em estacionar em qualquer canto e me apresentar a quem de direito. "Sim - diria - vim aqui porque desejo ficar, é uma questão de dias, meses ou anos, mas, já que tenho de vir para cá, aqui estou, evitando trabalho para mim e para os outros."
Com quem teria que falar? Com o homem do café no andar de baixo? Com o administrador que fica lá em cima? Ele poderia argumentar que me faltava uma condição fundamental para ter direito a ali permanecer: eu precisaria estar morto, documentado pelas autoridades do Estado. Ele diria: "Imagine o senhor se todos resolvessem queimar etapas e viessem para cá? Onde os botaria? O que faria com eles?"
Abandonei a idéia e continuei até Copacabana. Antes não a abandonasse. Aturei um dia chato, a começar pelo caixa do banco que me recebeu com má vontade. Quase lhe contei, olhe, estou dando trabalho contra a vontade, eu queria ficar na capela do São João Batista, mas não deixaram, era contra o regulamento dos cemitérios, seria uma amolação a menos para o senhor, eu queria queimar etapas, compreende?
Do banco fui para o trabalho, depois para casa, depois novamente o trabalho, a praia, o sol, as mulheres, as coisas boas da vida, as más, as mais ou menos. Continuei o cidadão normal inserido na normalidade das posturas estaduais, municipais e federais. Mas qualquer dia tomo vergonha. Enfrento a cólera dos funcionários da morte e crio um caso de vida.
Folha de São Paulo (São Paulo) 15/11/2004