Quem me deu “A queda do céu” para ler foi o cineasta Eryk Rocha, autor de um belo filme chamado “Breve miragem do sol”, que já está pronto e será lançado até o fim do ano. O subtítulo do livro explica, para quem não deseja pensar em mistérios, do que ele trata: “Palavras de um xamã yanomami”.
O xamã yanomami em questão é Davi Kopenawa, um líder espiritual daquele povo. E as palavras ditas por ele foram traduzidas e anotadas pelo etnólogo francês Bruce Albert, que há mais de 30 anos frequenta o interior da Amazônia brasileira.
O primeiro valor das reflexões registradas é resultado do “saber cosmológico” de Kopenawa, sua capacidade de refletir, interpretar e poetizar a mitologia de seu povo. Mas são igualmente importantes sua narração do rastro de doenças e ruínas deixado pelas invasões das terras indígenas, bem como a denúncia da destruição dos yanomamis pelos “brancos”. Sendo “brancos” uma classificação nada racial; mas um genérico para nomear os que cometem tanta violência, sejam de que raça ou de que cor forem.
O que nesse livro me parece iluminado é a cosmogonia em que seus autores se inserem para falar de um povo e de uma cultura. Embora isso não esteja declarado, não tenho dúvida de que o cientista social francês se emocionou ao constatar o quanto o delírio religioso do yanomami correspondia ao que está em ebulição pelo planeta afora. Assim como o xamã, pela proximidade do etnólogo, devia estar convencido da universalidade de suas origens e de seu destino, mesmo que aparentemente dessemelhantes.
“A queda do céu” não é, em absoluto, uma metáfora yanomami do que acontece com a humanidade. Mas é certamente um testemunho estranhamente poético do que temos em comum, nós que estamos aparentemente tão distantes uns dos outros.
Na formação cartesiana dos povos ocidentais, há sempre uma referência à necessidade de um conhecimento comprovado, algo que nos justifique como cultura superior. Uma cultura superior que, quando somos socialmente igualitários, evitamos declarar. O “superior”, no caso, é muito mais um progresso material, da vida cotidiana à guerra com o país vizinho, do que uma ideia de melhor nos conhecermos e conhecermos o mundo em que vivemos.
Outro dia, por exemplo, ficamos sabendo que o Japão está eliminando o micro-ondas de seus costumes domésticos, pois o governo acaba de descobrir que esse avanço na vida familiar já causou mais prejuízo à saúde das pessoas do que a bomba de Hiroshima. Bem, no mundo da informação e do conhecimento em que vivemos, essa pode ser até uma fake news oportunista, divulgada talvez pelos fabricantes de forno a lenha. Eles venderão mais fornos, como partidos hábeis em redes sociais elegem presidentes e futuros ditadores. O paradoxo é que essas “manobras”, tão contemporâneas, acabam nos fazendo voltar atrás, retornar ao passado.
Davi Kopenawa nos diz, com a tradução de Albert: “O pessoal da Funai tinha me dado uma rede de algodão bem grande e vários tipos de roupa. Tudo aquilo me deixava feliz. Dizia a mim mesmo: ‘Por que não imitar os brancos e virar um deles?’. Eu só queria uma coisa: parecer com eles”. E no entanto, mais adiante, o mesmo Kopenawa muda de ideia: “As palavras dos xapiris são tão incontáveis quanto eles mesmos, e nós as transmitimos entre nós desde que Omama criou os habitantes da floresta. Antigamente, eram meus pais e avós que as possuíam. Eu as escutei durante toda a infância e hoje, tendo me tornado xamã, é minha vez de fazê-las crescer em mim. Mais tarde, vou dá-las a meus filhos”.
Essa progressão entre o Outro e Eu, a volta do outro para mim mesmo, é só o que pode nos realizar como tribo, nação ou gênero, é só o que é capaz de nos constituir como ser original. Isso não se consegue com matemática ou física, com engenharia ou veterinária. Mas com filosofia, se entendermos essa ciência humana como o aprendizado do pensamento que nos faz conhecer o mundo. E não viver nele como um estrangeiro.
Não vou ousar pedir ao ministro da Educação que leia “A queda do céu”; muito menos ao presidente que ao menos o folheie. Ninguém pode empurrar livro algum no peito dos outros. Mas que eles aceitem quem gosta de lê-los ou, o que é o caso mais digno e mais belo, quem precisa lê-los.
Assim como nosso presidente irritou-se porque só viu, nas mãos dos manifestantes do dia 15, bandeiras pedindo a liberdade de seu inimigo jurado, é preciso que ele compreenda também que é nas mãos daquelas moças e daqueles rapazes que se encontra a possibilidade deste país ter um futuro e ser feliz.
Aliás, acompanhei as manifestações pela televisão e pela internet, e não vi nenhum sinal partidário. Posso estar errado, mas tenho a impressão de que essa ilusão é fruto de desconversa, imaginação ou simples delírio político. Sobretudo quando se tratar de uma causa justa, vamos deixar todos se manifestarem, como melhor entenderem, para que o céu caia sobre nossas cabeças. E nos ilumine.