Não sei não, mas, pelo que se vê e se ouve por aí, a impressão é a de que o Estado não mais representa o povo. A constatação foi feita, recentemente, por Mauro Santayana, no "JB". E ele disse mais: o Estado é uma empresa em falência com os sócios disputando o que resta.
De uma forma menos lúcida, o mesmo pensamento rola em editoriais, em colunas -especializadas ou não-, em debates e em mesas redondas na TV, onde nem mais aparece a mesa, que, redonda ou quadrada, foi abolida pelos cenógrafos.
A classe política está dando excelentes motivos para a sua satanização. Segundo alguns, ela entrou em choque com a sociedade. Concordo com o atual repúdio que dedicamos aos políticos em geral. Contudo me recuso a crer que a sociedade seja esse anjinho imaculado sob cujas asas nos abrigamos e nos damos o direito de xingar aqueles que estão fora dela.
É moda encher a boca com a palavra "sociedade" como expressão máxima da moral, do patriotismo, de todas as virtudes e bons predicados. A começar pelo simples fato de que, direta ou indiretamente, ela cria e mantém a classe política. Depois, convenhamos, mesmo abstraindo tudo o que se entende como "classe política", o que sobra da sociedade não é flor que se cheire. Não é uma vestal, dona da verdade e da compostura. Dentro dela, de suas múltiplas comportas, ela é injusta, discriminatória, violenta e... corrupta também, a seu modo e circunstância.
Lembro Antônio Callado na entrevista que deu à Folha dois dias antes de morrer, em 1997, aos 80 anos. Amargurado, ele dizia que faltava à sociedade uma âncora que a amarrasse a um ponto que a livrasse, primeiro, de andar à deriva (como está acontecendo); em seguida, uma vez fixada em determinados valores, pudesse construir uma comunidade humana menos egoísta, menos narcisista e mais solidária.
Minhas homenagens ao Mauro e, como sempre, ao Callado.
Folha de São Paulo (São Paulo) 26/05/2005