“Vamos deixar claro uma coisa: tamanho não é documento. Sobretudo: tamanho de obra não é documento. Cervantes não precisaria ter produzido nada mais do que o Dom Quixote: é uma definitiva obra-prima”
O que significa a palavra “prolífico”, quando aplicada a um escritor? É um elogio, é uma acusação ou é uma mistura das duas coisas? A pergunta tem razão de ser e, na verdade, traduz a nossa ambivalência quanto a livros e à leitura.
Todos elogiamos os livros. Eles são um repositório de saber, de cultura, de arte literária. Mais: são o fundamento de nossa existência. Para o crente, a Bíblia é a própria palavra de Deus. O capital, de Marx, condicionou o pensamento político de várias gerações. E o livro é um objeto modesto, prático, um livro que passou à prova do tempo: de Gutemberg até agora, o modelo é praticamente o mesmo.
Tudo bem. Só há um problema com os livros: eles foram feitos para serem lidos. O livro que, comprado, não é lido, torna-se um problema. Não pula da prateleira ou da mesa de cabeceira para agarrar o leitor; fica ali, quieto, esperando. Mas este silêncio é uma muda acusação: “Você não me lê. Você me deixa aqui, pegando poeira e entregue às traças, enquanto assiste à tevê ou vai ao cinema. Foi para isso que você me comprou?”
A acusação dos livros pode ser muda, mas a acusação aos livros não o é. Eventualmente, há uma explosão de raiva antibibliográfica, às vezes partindo de fontes inesperadas. “De muitos livros não há fim”, diz-nos o Eclesiastes. Sim, o Eclesiastes, que faz parte do Antigo testamento e que nos fala de uma época em que os livros eram manuscritos, não impressos – portanto, o número de títulos (se é que tinham títulos) deveria ser muito limitado. O Duque de Gloucester, irmão do rei George III, foi mais além: quando o historiador Gibbons lhe trouxe o segundo volume de seu monumental Ascensão e queda do império romano, explodiu: “Another damned, tick, square book! Always scribble, scribble, scribble! Eh? Mr. Gibbons?” – “Outro maldito, espesso, quadrado livro! Sempre escrevinhar, escrevinhar, escrevinhar! Não é, Mr. Gibbons?” Ignora-se o que o pobre Gibbons respondeu, se é que respondeu. Em geral, escritores sabem lidar com as situações no papel. Na vida real, têm mais dificuldade para isso.
Agora: se os livros são muitos, isso se deve em grande parte aos escritores prolíficos. Que causam ressentimento, tanto pelo número de títulos que produzem quanto pelo tamanho do volume. Passou a época do romance-rio, por exemplo, aqueles que exigiam vários volumes. Livro não pode ser grosso (também não pode ser muito fino, porque aí o leitor sente que o objeto adquirido não vale quanto pesa). O New York Times uma vez se referiu a um romance como “misericordiosamente curto”. Ou seja: o autor sabia que os leitores se sentiriam obrigados a lê-lo, mas facilitou-lhes a tarefa mediante a síntese.
O escritor prolífico às vezes pode ser até elogiado, e a expressão usada será, em geral, “assombrosa produção”. Mas muito mais que o prolífico será elogiado o escritor de poucas obras. O escritor que não escreve, fascina o público e fascina os críticos. Dois exemplos são o norte-americano J.D. Salinger (O apanhador no campo de centeio) e o falecido mexicano Juan Rulfo, autor de clássicos como El llano em llamas e Pedro Páramo. Salinger, além de não publicar, é recluso: não dá entrevistas, não fala com ninguém, não contraria opinião alguma, nem tem opinião. O que, de um certo ponto de vista, é ótimo. Do escritor que não escreve não se pode esperar nenhuma surpresa. É aquilo ali, os dois, três ou quatro livros que escreveu – e estamos conversados.
Vamos deixar claro uma coisa: tamanho não é documento. Sobretudo: tamanho de obra não é documento. Cervantes não precisaria ter produzido nada mais do que o Dom Quixote: é uma definitiva obra-prima. Mas escassez também não é garantia. Há autores de um único, e dispensável, livro. É triste que assim seja, mas é a verdade. Literatura não tem receita, não tem fórmulas. É um método que envolve tentativa e erro, e isso, numa obra, significa altos e baixos. Que correspondem aos altos e baixos da vida. Não são poucos os autores que renegam livros de sua autoria, sobretudo os escritos em início de carreira.
Agora: por que alguns escritores escrevem mais do que outros? Por que têm mais dificuldade em encontrar o seu caminho? Talvez. Mas arrisco outra resposta, envolvendo aquilo que Roland Barthes denominou de “o prazer do texto”. Amigos: escrever pode ser uma coisa extremamente prazerosa, aquelas palavras enfileirando-se no papel em branco ou na tela do computador, compondo uma história e um texto que aos poucos vai adquirindo coerência, consistência, transcendência. Ou seja: tudo o que queremos na vida.
O escritor tem o direito ao prazer. Tem o direito (desde que os editores concordem e os livreiros também) de ver esse prazer transformado naquele objeto chamado livro. Mas os leitores também têm o direito ao prazer, e o direito à emoção, e o direito ao conhecimento. Se o escritor produz um livro que dá aos leitores prazer, emoção, conhecimento, tudo bem. Se produz 20 ou 30 livros que dão prazer, emoção, conhecimento, melhor ainda. Se o escritor é prolífico ou é o autor de um livro só, é irrelevante. O que importa é o resultado.
Correio Braziliense (DF) 30/3/2007