Não nos basta a derrota da lei antibingos, o disparo do dólar, o desnecessário quiproquó internacional com o New York Times. Essa chegada aos meados de 2004 levanta incidente mais inquietante à imagem política que o PT trouxe ao primeiro plano do poder. Difícil emergência mais nítida, puxada pelo roldão da vitória, que a de João Paulo Cunha no comando da Câmara. A sua expertise devemos a votação das reformas da previdência e fiscal. O deputado paulista tornou-se peça chave na administração desta inédita supermaioria do Governo, transpondo, sem perda, da massa, o peso dos partidos aliados, aos votos no Congresso para o desemperro do statu quo brasileiro. João Paulo, a partir do trabalho conjunto com a Casa Civil, costurou o fio do adesismo mais atilado, com a visão clara dos prêmios e rações efetivas a que poderiam fazer jus, pondo em marcha o aparelho legislativo nacional.
Empurrão ainda quase esquivo, deixando, a caminho, exigências mais fundas, do que seja mexer no que está aí, no trato dos antigos privilégios da aposentadoria pelo Brasil instalado, ou de uma engrenagem de impostos que, de fato, esterilizam, afinal, o dispêndio público. Quer-se, por aí, eliminar o vespeiro burocrático que desfigura cronicamente a passagem da verba à obra pública.
A reforma política anunciada viria na esteira destes primeiros passos, acenando às novas regras da representação, da redução das legendas de aluguel, sobre o rótulo dos partidos nanicos, ou do corte ao “leva e trás” da filiação, ou do basta às mudanças de ultimíssima hora dos súcubos do sistema - batido o martelo do seu preço.
Na crista de todo esse empenho das reformas não é senão o homem novo do PT que, de repente, entrega-se a todo o contrário da política esperada de um puro-sangue da estirpe emergente de legisladores, no pleito de renovação do mandato de presidente da Câmara. Passou, para tal, por todas as etapas, e contorções da negociata mais óbvia, no chorrilho desgastante, a fim de permanecer no posto, mesmo fosse ao custo de uma emenda constitucional. Não hesitou, no embalo continuista, em tentar a mais opulenta das mudanças, a da Carta Magna, para que o voto em causa própria fosse risco a correr, prematuro, no Congresso pelo partido fortíssimo e em início de seu fastígio político. Não se constrangeu a atentar contra a fé democrática arraigada da legenda, que começa pela aceitação dos rodízios e renovações dos postos no Congresso. O que espantou o País foi o recurso, por João Paulo, a todos os usos e costumes, da melhor moeda da mercancia eleitoral, e de apelo à cornucópia dos benefícios, messes e galas, que um regimento arrombado permitiria ao saque da hora.
Não há mais gregos e troianos, nem gatos que não pardos, na gula pela venda do voto e nas bolsas gerais do tráfico de favores, em apoio à prótese constitucional pelo “bis” do cargo. É como se desabassem todas as diferenças pretendidas, afirmadas em começo de mandato, no mesmo esparramar-se do PT no ninho quente das benesses dos cargos - vistas, ainda há meses, como inadmissíveis - pela nova estirpe de legisladores chegados ao Congresso, cátaros, ideologicamente hígidos. Vantagens-residência, vantagens-gasolina, purga de faltas, critérios laxos de controle de presenças, todas as benesses nédias do status quo, ansiosas pelos acréscimos e contracheques, em que se refestela o legislador intransitivo. Nas entrelinhas, sobretudo, o que desapareceu, de vez torcido o seu pescoço por João Paulo, foi a viabilidade mesma da reforma política nesta legislatura, saída de cena sem estrépito nem pestanejar. Garanta-se o elenco da atual mesa diretora da Casa do Povo, mesmo à custa do adiamento, senão da mudança, do libreto do espetáculo.
O excesso de realpolitik de João Paulo levou o Governo ao desgaste da ação renovadora do Congresso. O investimento numa só pessoa deixa a Casa, agora, desarmada de outra liderança, para pretender-se porte igual, na condução do segundo tempo de Lula no primeiro mandato. O continuísmo a qualquer preço envenenou as peças do jogo para manter-se o PT à frente do Legislativo, no que lhe cabe como partido dominante. Aí está, é verdade, para o extremo da crise no recrutamento para a presidência da Câmara, o ministro deputado Dirceu, como afinal o homem de todas as horas.
De toda forma, João Paulo correu a sua sorte, sem o empenho do Planalto, nem prova dos nove da sua mobilização, guardada no coldre do regime. Atrito de risco que já abre a vulnerabilidade prematuríssima do Governo, chamado às vias de fato no pleito municipal. Indo ao palanque em São Paulo, em Porto Alegre ou no Recife, não foge do plebiscito prévio, em que já se transformaram as eleições de novembro próximo. O presidente o sabe, no tudo ou nada que é do seu feitio e da sua garra. A largada sôfrega de João Paulo tornou inevitável a briga de coreto para o “Lula lá” em 2006.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) 28/5/2004