Sebastião de Souza e Silva nada tinha a fazer em Roma ou em outro lugar qualquer
QUEM TEM boca vai a Roma. Sebastião de Souza e Silva tinha boca, enorme e desdentada boca, nem por isso fora a Roma. Diga-se, a favor dele e de seu destino, que jamais tencionara ir a Roma ou a qualquer outra parte, desde que vivesse ou o deixassem viver em paz, em qualquer canto, até mesmo em Roma.
Sebastião de Souza e Silva também nunca madrugava, nem por isso Deus o ajudava nem fazia qualquer esforço para ajudá-lo.
Dormia até tarde nos fundos de um restaurante, no meio de sacos de batata, garrafas vazias e gatos, cheios de restos de comida, dormia ali de favor e, se nada pedia a alguém, ninguém lhe pedia nada. Neste departamento, ele se dava por bem pago. No jogo da vida, considerava-se empatado.
Sebastião de Souza e Silva nada emprestava a Deus, tampouco dava qualquer coisa aos pobres, sendo ele mesmo tão pobre que nada lhe davam, nem mesmo aqueles que tinham algum interesse em emprestar a Deus.
O homem feliz não tinha camisa. Sebastião de Souza e Silva não tinha camisa nem era feliz. Em compensação, não tinha um pássaro na mão e pouco se incomodava com o fato de haver dois ou mais voando. Nunca lavava a égua porque, entre outros motivos, não tinha nenhuma égua. Nessa, como em outras questões, Sebastião de Souza e Silva adotava o sábio lema de que em boca fechada não entra mosquito. Nem por isso se dava bem: vivia de boca fechada, mas uma vez ou outra, quando dormia com a enorme e desdentada boca aberta, não só lhe entravam mosquitos como, de certa feita, até uma barata lhe entrou. Coisas da vida, ou como dizem os franceses, "choses de la vie".
E como dizem os italianos, "piano, piano se và lontano", Sebastião de Souza e Silva nunca foi longe apesar de andar pouco a pouco, eis que não fazia empenho em andar depressa e, sobretudo, não pretendia ir longe. Quanto mais perto as coisas lhe acontecessem, melhor. E se os ingleses garantem que "time is money", ele não tinha dinheiro nem tempo para perceber que há tempo para plantar e tempo para colher.
Mas a vida -a dele em especial- era uma luta que os fracos abate e os fortes e os bravos só pode exaltar. Viver não era lutar e não adiantava lutar para viver. Quem semeia ventos colhe tempestades. Sebastião de Souza e Silva nunca semeou ventos, mas colheu algumas tempestades por aí, sobretudo naquela famosa inundação de 1986, quando as cataratas do céu se abriram e choveu durante 20 dias e 20 noites, e um deslocamento de terra soterrou o restaurante onde o deixavam dormir. Como Sebastião de Souza e Silva apenas ali dormia, e morava no resto do mundo, não sofreu muito com a perda e até ajudou os bombeiros a resgatar os corpos de uma casa vizinha que ficou soterrada.
Todos terão direito a 15 minutos de glória. O fato é que Sebastião de Souza e Silva desta vez emplacou e teve não cinco minutos, mas 15 segundos de glória, quando a repórter da TV perguntou-lhe como tinha sido o acidente. As câmeras focalizaram Sebastião de Souza e Silva. Sua enorme e desdentada boca foi vista, a cores, via satélite, em alta definição, por 120 milhões de pessoas. Perguntaram-lhe se tinha perdido tudo com o temporal e ele só disse uma frase: "Foi, sim senhora", e naquele dia, ganhou um sanduíche de um dos bombeiros.
Descobriu que, em tendo afinal uma boca, fatalmente poderia ir a Roma, se quisesse. Mas não quis. Sebastião de Souza e Silva nada tinha a fazer em Roma ou em outro lugar qualquer, nem mesmo lavar a égua que não tinha. Dormiu aquela noite sob uma marquise e foi obrigado a madrugar cedo. Ficou chateado não por causa do sono interrompido, mas pela certeza de que, continuando a madrugar cedo todos os dias, Deus jamais o ajudaria, nem lhe daria tempo para ter dinheiro.
Dispondo de enorme e desdentada boca, Sebastião de Souza e Silva desconfiou que com ela poderia ganhar um sanduíche todos os dias, desde que todos os dias houvesse inundações e deslocamentos de terra. E todos os dias ele olhava o céu esperando que o céu olhasse por ele. Mas assim na terra como no céu nada queriam com ele. Com sua enorme e desdentada boca, Sebastião de Souza e Silva nem comeu o pão que o diabo amassou.
Folha de S. Paulo (SP) 2/5/2008