Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > À procura de um cânone

À procura de um cânone

 

Começa hoje a parte principal da Jornada Mundial da Juventude, com a presença do papa Francisco. O Brasil não é mais um país tão católico quanto já foi. Nem se exclui a possibilidade de uma ou outra passeata mal-humorada. Mas há poucas dúvidas de que o líder máximo do catolicismo vai se ver, nos próximos dias, envolto numa onda de afetividade bem brasileira.

Primeiro, por ser o Papa, o “pai”. Com todas as conversas sobre crise da Igreja, a mística do papado continua bem viva, como se viu no recente processo de substituição de pontífices. Entram aí, além do fator religioso, ingredientes que só os psicanalistas poderiam explicar.

Segundo, por ser ele quem é. A revista “Time” acaba de lhe dedicar matéria de capa: “The people´s Pope”, o papa do povo. O paradoxo do papa Bergoglio é que ele parece tão simples sendo ao mesmo tempo tão sutil. Ele acerta em cheio no problema da comunicação, sem dar a menor impressão de que está fazendo marketing. Ele soa autêntico — e isso, nos dias de hoje, vale o seu peso em ouro.

Terceiro: ele é um ponto de referência, outro dado precioso numa época que perdeu as suas referências.

Vale aqui um cruzamento com a crise política brasileira. Os jovens estão na rua cobrando alguns itens básicos: transporte, educação, saúde, combate à corrupção. A lista poderia ser aumentada. Mas o que está por trás destas e outras reivindicações é a exigência de um cânone, de um padrão aceitável para a convivência social.

Esse cânone é o que era fornecido pela educação tradicional. Ainda hoje, sobretudo num contexto de pequena classe média, você pode encontrar esses valores em razoável estado de conservação, num extrato social que depende do seu próprio esforço para “chegar lá”. Gente que não costuma ter padrinhos fortes, o “quem indica”. Que sabe o quanto vale um bom colégio; que ainda foi ensinada a respeitar os mais velhos, a ajudar o parente que perdeu o pé na vida.

São valores que podem ter relação com uma educação religiosa. Toda religião supõe um cânone. O mundo judaico-cristão começa com a Lei que Moisés trouxe do alto do Sinai, e sua parte mais famosa são os Dez Mandamentos: não matarás, não furtarás, honrarás teu pai e tua mãe, não cobiçarás a mulher do próximo ... Normas que tanto atendem à religião como dão suporte à convivência social.

No cristianismo, isto sofreu uma correção de ênfase com a surpreendente reabilitação dos humildes. “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus... bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados ... bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra ...” O pobre, nessa visão, é aquele que possuirá a terra porque não se deixou sufocar por ilusões (a “vaidade das vaidades” de que fala o Eclesiastes), porque é capaz de dar graças pelo pouco que recebeu.

Nem todos os pobres são assim, claro. Mas se o Cristo dirigiu-se, inicialmente, a humildes pescadores da Galileia, e não à elite culta de Jerusalém, não foi por achar que, nesse terreno, a sua mensagem seria mais facilmente entendida?

Esse era o contexto da primeira comunidade cristã, como está descrito nos “Atos dos Apóstolos”. Gente que tinha pouco, e que se ajudava na medida do possível.

Depois a Igreja foi se substituindo — até por necessidade — às estruturas corrompidas do velho império romano. Bispos houve que se tornaram verdadeiros príncipes, para não falar nos cardeais. Chegou o dia em que os papas faziam e desfaziam testas coroadas. O mais poderoso deles, Inocêncio III, recebeu a visita de um certo Francisco, que queria licença para fundar uma congregação em que os irmãos viveriam realmente como pobres. Parecia uma simples curiosidade. Hoje se sabe que foi a salvação da Igreja medieval.

Talvez em tons menos dramáticos, é o que parece decidido a fazer o papa Francisco, que, como cardeal, andava de ônibus, pagava as próprias contas e cozinhava o próprio almoço. Muita novidade para um Vaticano que, sem ser uma corte renascentista, estava acostumado a um ritual superfino.

O novo papa é a mais improvável das surpresas — um homem comum (ou que parece comum) instalado na chefia da mais antiga e misteriosa instituição da Terra. Ele, sozinho, é um cânone.

O Globo, 22/7/2013