A ignorância dos fanáticos não admite as nuances próprias da democracia. Para eles, é preto ou branco. Nós ou eles. Amigo ou inimigo, num pastiche tropical da tese do jurista alemão Carl Schmitt, referência do pensamento político autoritário. Lula e Bolsonaro são populistas acostumados a seguidores cegos, e os que os criticam são inimigos.
Visões autoritárias convergem em alguns pontos, embora hoje, depois de três anos de governo Bolsonaro, não seja mais possível compará-los. A realidade do desgoverno bolsonarista, que solapa as instituições desde o primeiro dia, impede que seja comparável a qualquer outro governo desde a redemocratização, apesar dos desmandos registrados nos governos petistas.
É impossível, ao ver Bolsonaro usando o Palácio do Planalto para celebrar o indulto que concedeu a um deputado condenado pelo Supremo Tribunal Federal, não lembrar a então presidente Dilma, nos salões do mesmo Palácio do Planalto, ouvindo dirigente da CUT dizer que pegaria em armas para defendê-la. Ou, quando Bolsonaro instiga seus seguidores a atos inconstitucionais, não ouvir o eco de Lula dizendo que, quando Stédile (o chefe do MST) pusesse nas ruas o seu “exército”, todos veriam que “também sabemos brigar”.
Os petistas já decretaram que criticar Lula é ajudar Bolsonaro. Pior: não votar em Lula no primeiro turno é estar ao lado de Bolsonaro. Quando o Supremo sofre ataques de bolsonaristas fanáticos, é impossível não ouvir políticos petistas pedindo o fechamento do STF, quando este decidiu não conceder um habeas corpus a Lula, que estava preso. Quando, meses depois, o mesmo STF decidiu a favor de Lula, libertando-o, virou “progressista”.
Mas, diante de Bolsonaro, Lula é um democrata, pois nunca cruzou a linha da retórica e, nos momentos cruciais, aceitou o império da lei. Foi tentado a querer um terceiro mandato, como seus congêneres da América Latina, mas sentiu que atravessaria a linha vermelha que o separa dos ditadores seus amigos e ficou dentro da lei.
Condenado, se encastelou no Sindicato dos Metalúrgicos, foi mais de uma vez tentado a resistir ou a se exilar, mas acabou se entregando à Justiça. Neste momento em que se veem as Forças Armadas sendo usadas pelo presidente Bolsonaro para corroer a democracia, é preciso lembrar que nunca nos governos de Lula chegou a haver tamanha promiscuidade institucional.
Bolsonaro conseguiu até relativizar os escândalos de corrupção ocorridos durante os governos petistas — mensalão, petrolão — com o orçamento secreto. Assim como os esquemas petistas visavam a desidratar a democracia, cooptando parlamentares por meio de propinas, também o orçamento secreto tem essa finalidade. Ambos os governos controlaram o Congresso com ações “fora das quatro linhas”.
O Centrão, que já navegou nas águas turvas do mensalão e do petrolão, agora legalizou a propina com as verbas de relator. Assim como o PT “lavou” dinheiro com doações aparentemente legais. Os fanáticos da internet, que têm opinião sobre tudo sem saber de nada, dividem-se entre os contra e os a favor, o que impede o diálogo e rebaixa nossa democracia. É um fenômeno mundial, em que o baixo clero da sociedade tem voz e ajuda a perpetuar a ignorância.
Quando relembrei uma proposta do então deputado federal Miro Teixeira de realizar o segundo turno com os três mais votados, deixando claro que tal mudança só poderia ocorrer na próxima eleição, fui “cancelado” por petistas nas redes. O que eles não sabem, por ignorantes, é que essa proposta, como revelou o site O Antagonista, também foi apresentada no Senado e teve apoio, na ocasião, dos senadores petistas Paulo Rocha, Rogério Carvalho e Jean Paul Prates. Também o senador Randolfe Rodrigues, hoje um dos coordenadores da campanha de Lula, apoiou a iniciativa.
No mundo todo estudam-se maneiras de dar ao voto individual maior consistência e chances ampliadas de superar polarizações como as que enfrentamos. Outro tipo de voto testado em diversas regiões dos Estados Unidos é o voto ranqueado (ranked choice voting): os eleitores escolhem quantos candidatos quiserem e os colocam na ordem de preferência. Candidatos que conseguem ter maior pontuação de primeiras escolhas, mas também aparecem como segunda ou terceira escolha dos eleitores, têm maior chance de se eleger. Os eleitores também têm menos estímulo para não votar, pois podem dar sua primeira escolha a seu candidato, mesmo que ele tenha pouca chance, mas colocar os demais votos estrategicamente para barrar um candidato ou fazer com que sua segunda escolha saia beneficiada.