As primeiras esperanças da "primavera árabe", no que ora acontece em torno do Mediterrâneo, reforçam o presságio de que a derrubada de ditadores não assegurou, por si mesma, o avanço, num Estado democrático, dos direitos humanos ou de garantia do Estado laico da modernidade.
As eleições da Tunísia suscitam o receio do levante de um fundamentalismo, mesmo a partir da vitória dos moderados do partido Ennahda. Os liberais não lograram mais que um quarto de votos, tanto o novo partido dominante superou os 50%, e as demais cadeiras foram às alas mais radicais e intransigentes do aliciamento político pela fé.
Inquietantes, sobretudo, agora, são as primeiras declarações do presidente do Conselho de Transição da Líbia, a procfamar, de imediato, o retorno à Sharia como base das instituições pós-Kadafi. Contrastou, e num paradoxo, em termos da modernidade democrática, com os regimes anteriores, da absoluta defesa do Estado laico pelos governos derrubados de Ben Ali ou de Mubarak. E só nasce na expectativa da nova Constituição egípcia, a ascendência religiosa, que já se faz sentir pela Fraternidade Muçulmana, contida pelo governo de Mubarak, na sequência da revolução de Gamai Nasser.
Denota-se, por outro lado, a crescente ambiguidade das relações com a Otan e os EUA em toda essa área do Oriente Médio, a permitir ao presidente do Iêmen, na iminência dà sua remoção, reforçar-se, junto a Obama, na luta anti-Al-Qaeda, e a execução de seus promotores no país. A perplexidade continua, na perspectiva de um futuro imediato, na declaração, afinal, por Obama, da retirada das tropas do Iraque. Sente, também, a opinião pública americana o caráter de quase ultimato a Israel, ao significar a Presidência americana, que será, a deste ano, a última delonga no debater-se a constituição do Estado palestino.
De toda forma, aí está a trava do efeito dominó, entrevisto, ainda há seis meses, como a onda das derrubadas das múltiplas ditaduras, que se seguiram à criação dos Estados nacionais árabes mediterrâneos. Consolidam-se as situações políticas da Argélia ou do Marrocos, e o intervencionismo latente da Arábia Saudita garante os regimes do Bahrein e do Qatar, não obstante a contradição entre _ as monarquias reinantes sufis e a larga maioria xiita de suas populações. A situação da Síria ainda encontra um outro complicador, qual o da massa dos seus migrantes iraquianos, a criar o risco de nova desestabilização, com a possível queda de Assad.
A desocupação de Bagdá impõe uma nova componente no equilíbrio emergente na região, com implicações também sobre a Jordânia. Os desfechos da "primavera árabe" instigam a superação de um estrito atraso político, num advento universal do regime democrático. A derrubada das torres de Manhattan já mostrara o quanto, para além das homogeneizações do regime, apenas começa o conflito cultural e a luta pelas identidades coletivas, de que dão conta as "guerras de religião" da pós-modernidade.
Jornal do Commercio (RJ), 4/11/2011