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As previsões de um vidente cego

 

Tinha um "siderômetro", equipamento que previa a morte de qualquer astro internacional


DURANTE ALGUM tempo, como editor de uma revista ilustrada, tinha como obrigação do ofício fazer o último número do ano com o que chamavam de "retrospecto" dos meses que haviam passado. Era uma tarefa ao mesmo tempo fácil e chata.


Pegava na pesquisa os sumários das publicações, procurando basicamente os mortos havidos nos últimos 365 dias, os casais famosos que haviam se separado, os momentos mais quentes do futebol, da política, do cinema, da televisão e dos espetáculos.


A pauta era a mesma de todos os anos e, por ser a mesma, havia sempre uma conquista científica que abriria novos caminhos para a humanidade. Em algum laboratório do primeiro mundo, a cura do câncer estava iminente.


Um número de fim de ano é tão monótono quanto o primeiro do ano seguinte, quando a matéria principal não podia ser o retrospecto do que houve, mas a previsão do que poderia haver.


Em geral, dava-se destaque aos palpites dos videntes profissionais, uns caras geralmente vestidos de branco, num cenário esotérico, alguns com um globo de luz fazendo a função da bola de cristal, outros jogando búzios, todos chutando com a seriedade de donos do futuro e das gentes.


Num ano qualquer, cismei de acabar com aquela tropa de magos e inventei um tal de Allan Richard Way, indiano radicado na Inglaterra, morando num subúrbio de Londres, numa casa de estilo Tudor. Tinha a peculiaridade de sofrer de glaucoma e catarata. Na altura da quinta ou sexta entrevista, tornou-se o único vidente cego da história.


Difícil o acesso a Allan Richard Way. Somente um jornalista ocidental era recebido por ele todos os anos: tratava-se de um amigo, meu e dele, Richard Macpherson, também inventado por mim. (O nome foi tirado de um ponta esquerda da seleção inglesa daquele tempo).


Macpherson havia conhecido o vidente na Índia e garantia que ele previra os atentados que mataram diversos mandatários locais.


Daí que Allan Richard Way julgou mais prudente asilar-se na Inglaterra, país em que sua atribuição principal era prever os escândalos da Casa Real, os vestidos amarelo-canário da Rainha Mãe, as derrotas do "English Team" e, eventualmente, uma mortandade de peixes antes da despoluição bem-sucedida do rio Tâmisa.


Com este suculento currículo internacional, Macpherson fazia Allan Richard Way prever terremotos no Japão, assassinatos na Albânia, suspeitas de desfalques nos bancos suíços, doenças insidiosas no estômago do papa reinante, separações escandalosas nas monarquias européias e no cinema norte-americano.


Capítulo especial era dedicado aos que iam morrer naquele ano. O vidente possuía um "siderômetro", equipamento complicado que, de posse da data natalícia de um astro internacional, previa cientificamente a sua morte.


Por escrúpulo profissional do seu entrevistador, o vidente não era explícito. Nunca dizia pão-pão, queijo-queijo. Ficava mesmo em alusões periféricas.


"Um certo cantor de prestígio mundial, que recentemente assinou contrato com uma gravadora internacional, sofrerá um acidente de carro e não sobreviverá." "Um escritor que quase ganhou o Prêmio Nobel sofrerá uma parada cardíaca provocada pelo excesso de gim. Deixará um livro inédito."


As seis páginas dedicadas às previsões do vidente indiano exigiam que na abertura houvesse uma linha de chamada para a matéria, uma linha que deveria ter 72 batidas de máquina -as redações ainda não tinham computador.


Naquele ano, na afobação do fechamento, a frase alertava Elizabeth 2ª. para um fim próximo. Mas o nome da rainha estourava da medida. Substituí o Elizabeth pelo nome de Sartre, que realmente morreria meses depois.


Pressionado por mim e pelos leitores que gostavam de saber o que podiam esperar do futuro, Macpherson pedia revelações sobre o Brasil. Houve um ano em que Allan Richard Way previu um desastre na ponte Rio-Niterói; algumas pilastras desabariam e haveria mortos e feridos.


O ministro responsável não gostou da previsão. Mesmo assim, ordenou uma vistoria geral em toda a ponte e emitiu nota tranqüilizadora aos usuários.


Foi o fim do vidente que já estava totalmente cego e do único repórter ocidental que o entrevistava. Não tardou e a própria revista chegou ao fim.


Folha de S. Paulo (SP) 28/12/2007

Folha de S. Paulo (SP), 28/12/2007