“Poucos negarão que os negros no Brasil foram vítimas de uma cruel opressão: nosso país foi o último a terminar com a escravatura. Gerou-se daí uma desigualdade histórica, que não será anulada pela simples passagem do tempo”
A mídia do mundo inteiro deu enorme destaque ao nascimento dos gêmeos ingleses Kaydon e Laydon; um preto, outro branco. A notícia despertou curiosidade, ainda que o fato não seja raro (aqui no Brasil, por exemplo, já aconteceu várias vezes). Mas tem um conteúdo simbólico muito evidente, e neste sentido ocorreu uma significativa coincidência: no mesmo dia, realizou-se, na Academia Brasileira de Letras, uma mesa-redonda que tive a satisfação de coordenar e que discutiu uma das figuras mais controversas da história brasileira, o médico Raimundo Nina Rodrigues, cujo centenário de falecimento ocorre neste ano. Participavam da mesa pessoas destacadas: o médico e professor Naomar de Almeida Filho, reitor da Universidade da Bahia; o doutor Paulo Buss, presidente da Fundação Oswaldo Cruz; o médico Paulo Gadelha, pesquisador da Fiocruz; e a antropóloga Ana Teresa Venancio.
Nascido no Maranhão, Nina Rodrigues formou-se no Rio e foi exercer a medicina em São Luís, onde de imediato notabilizou-se pela preocupação social. Estava convencido de que a precária dieta dos nordestinos era causa de doença; tanto alertou contra esse risco que ganhou o apelido de Doutor Farinha Seca. Desgostoso, mudou-se para Salvador, onde tornou-se professor da Faculdade de Medicina, onde seu interesse dirigiu-se para a questão racial. Nina Rodrigues dedicou-se a estudar os negros, como médico e como antropólogo amador que era. Publicou vários livros sobre o assunto; defendia a cultura negra e as religiões afro-brasileiras, então consideradas ilegais e reprimidas pela polícia.
Vocês imaginarão que esse homem é hoje lembrado como o arauto de idéias avançadas. Nada disso. Nina Rodrigues é considerado por muitos como um racista empedernido e não sem razão: achava que os negros eram biologicamente, congenitamente inferiores, e responsáveis pela inferioridade dos brasileiros. Mais: para ele, a mestiçagem, da qual resultou o mulato, era um fator de “degenerescência”. Entre outras coisas, o mulato seria propenso à tuberculose e àquilo que então se chamava de “neurastenia”, nervos fracos.
Ou seja: um homem contraditório, o que, no Brasil e no mundo em que vivemos, não chega a ser exceção. Contradições semelhantes explicam a confusão que reina no debate sobre as cotas nas universidades que envolve desde intelectuais famosos até os skinheads. E é um debate amargo. Poucos negarão que os negros no Brasil foram vítimas de uma cruel opressão: nosso país foi o último a terminar com a escravatura. Gerou-se daí uma desigualdade histórica, que não será anulada pela simples passagem do tempo. Alguma coisa tem de ser feita para diminuir o gigantesco fosso social criado ao longo de séculos. E isto é, claramente, uma tarefa do governo, em primeiro lugar, e da sociedade como um todo. Todos, ou quase todos, concordam em que uma ação afirmativa se faz necessária; o debate está no que exatamente fazer, e aí temos basicamente duas posições. Uma delas parte do princípio de que, assim como os negros foram injustiçados, eles agora precisam ser ajudados. A outra diz que os negros não são os únicos injustiçados; os pobres de maneira geral o são. Portanto, as cotas em universidades públicas deveriam ser distribuídas segundo o critério da renda, o que incluiria automaticamente os negros e evitaria aquela difícil questão: quem, exatamente, é negro no Brasil, país onde o mesticismo (detestado por Nina Rodrigues) é a regra?
Amarga polêmica. Mas é bom lembrar que, como Kaydon e Laydon, temos uma mesma origem e que, portanto, precisamos aprender a conviver, ajudando-nos mutuamente. Nesse sentido, resolver o problema das cotas é um desafio. Resolvê-lo fará com que cresçamos como povo.
Correio Braziliense (DF) 10/11/2006