Mesa-redonda, promovida na semana passada pela Academia Brasileira de Letras, tratou da obra de Cyro dos Anjos, sobre a qual falamos Ledo Ivo, Sábato Magaldi e o autor destas linhas.
Como escritor, criou Cyro dos Anjos um escrínio próprio dentro da literatura brasileira. Lírico, esculpindo o "R" de Risoleta numa palmeira imperial, era também zombateiro, mas de leve. As paixões se sucedem no seu "O amanuense Belmiro": Fabíola, Diva, Elza, idas ao cinema; a palavra mágica da época era cinematógrafo.
Família grande, irmãos e irmãs, o mano Artur tocava flauta na orquestra do lugar, acima de tudo as raparigas em flor, não muito diferentes das que Proust vira muito longe, numa cidade chamada Paris.
O mundo era feito de um permanente ritual, havia o que devia ser feito e o que não devia, talvez igual a qualquer outro aglomerado de gente, surgira uma guerra na Europa, mas o mundo mineiro tinha suas realidades próprias, Santana do Rio Verde, cidade real que se toma fictícia, ou vice-versa, parecida com Ubá, Caratinga, Pomba, Teófilo Otoni, todo aquele chão de pura classe média, diferente da região do Urucuia, onde o Rosa ergueria seu mundo.
Palpitava em todos esses burgos uma paixão pela vida, que se exprimia numa busca incessante de atividades que incluíam para os meninos, o contato com os mendigos, que se tomavam amigos, pois a eles cabia, em Santana, a tarefa de dar esmolas e de presidir a distribuição da farinha. Formavam, assim, os mendigos, uma classe definida. O sábado era o dia consagrado à pobreza e os pobres desfilavam diante dos meninos para receber seu de-comer.
Todo esse mundo que a memória grava e melhora aparece na ficção de Cyro dos Anjos, com Belmiro já morando em Belo Horizonte e mergulhado não só na luta pelo trabalho, mas também no trabalho de ver e amar as moças. Note-se que a invenção do nome de sua nova capital - e quando os dois, Cyro e Belmiro, lá chegam, a cidade mal saía da infância - note-se que belo nome para ela descobriram. Já nos acostumamos com Belo Horizonte como sendo uma cidade, uma capital, nem sempre nos lembramos que se trata de um nome de gosto mineiro, no orgulho de um horizonte que antes de tudo é belo.
Tanto na ficção como nos livros de memória de Cyro dos Anjos vemos uma juventude que ali começa a aparecer: Santiago Dantas, Gustavo Capanema, Juscelino Kubitschek, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Chico Campos. Indo em férias à sua cidade natal depara com a exaltação provocada por soldados que iam para o Norte no encalço dos rebeldes da Coluna Prestes.
Com o lançamento de seu romance "O amanuense Belmiro" entrava Minas Gerais de corpo inteiro na ficção brasileira do Século XX. É narrativa na primeira pessoa, como se fosse livro de memórias, num estilo que flui num ritmo natural, as palavras parecendo sair mais no leitor do que do romancista, na busca de um tempo que fugiu, quando personagem sofre porque não mais encontra a gameleira solitária, que derrubaram para nada.
A fazenda, o rio, o buritizal, a própria montanha deixaram de existir. A lagoa foi drenada e convertida em pasto. Como se pode suprimir uma lagoa? Como se pode cortar uma árvore? É como se destruíssemos algo humano, vivo, fremente.
E necessário tomar uma decisão: não voltar aos lugares antigos. As coisas não estão no espaço. As coisas estão é no tempo. As coisas moram no tempo. E o tempo está dentro de nós.
Como se vê, quem sai no encalço do passado reconhece que pode recuperar o que se foi. Toda a técnica narrativa de Cyro dos Anjos está nessa feliz sujeição ao tempo, nesse amor ao tempo, desde que saibamos aceitar a possibilidade, quase a certeza, de que podemos vencer o real. Fui encontrar numa revista de Belo Horizonte, "Acaiaca", edição de março de 1958, a fonte da tranqüila aceitação de Cyro dos Anjos perante as possíveis violências da realidade.
Há, nesse número de "Acaiaca", um poema de Ledo Ivo, "Homenagem a Lorca", um ensaio de Zora Seljan sobre "Teatro e folclore", um poema de minha autoria, "A roupa do nascimento" e, entre outras matérias, um artigo de Cyro dos Anjos, chamado: "Arte: necessidade biológica". Nele, depois de ligar a sensação estética às manifestações básicas do ser humano - como a fome e o sexo - diz concordar com André Maurois de que precisamos "emoldurar o real" para vencê-lo. Precisamos de ritos. Precisamos de uma liturgia. A morte pode provocar reações desesperadas, choros, gritos, cenas de histeria.
Seria uma loucura se os ritos não interviessem para estabelecer uma ordem. Antes de mais nada, o morto é posto numa cama, em atitude calma e nobre, como se fosse uma obra de arte. Em seguida, a religião impõe, aos circunstantes, que tenham comportamento ordenado, que recitem textos, que são orações e poemas. Os cantos, pela intervenção de culto, substituem os gritos, formando um "emolduramento do real", as vezes uma "representação do real", uma "evasão do real" ou uma "complementação do real".
Nesse artigo da revista "Acaiaca" está uma posição que se mostra de acordo com o temperamento de Cyro dos Anjos, escritor que tão bem nos representou, em sua luta silenciosa para governar os acontecimentos sem deixar de neles sentir a força, a tragédia, a beleza, a poesia da aventura humana.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 03/08/2004