O sistema de dedicar parte de suas reuniões semanais a lembrar, numa série de efemérides, a figura e a obra de acadêmicos mortos, mantém a Academia Brasileira de Letras fiel à sua missão de preservar a memória do país no setor que lhe compete. De Cláudio Manuel da Costa foi dos mais recentes efemérides ali apresentadas.
A presença de Cláudio Manuel da Costa na memória brasileira lembra-nos um culto pela forma que tem sua base na volúpia da palavra, usada como reação a qualquer desvio anterior no seu uso. Nascido em junho de 1729, vinha ao mundo em ano simbólico, pois foi o da descoberta oficial de diamantes na capitania. Ofício do governador a Lisboa, anunciando a boa nova e acompanhado de mostra de diamantes descobertos, tem a data de 22 de junho de 1729. Era o século da fartura, marcado também pela eclosão de poesia na região e pela presença do artista que passamos a conhecer como Aleijadinho.
Ocupante da cadeira em que hoje estou, José Francisco de Oliveira Viana, que nos ajudou a pensar o Brasil, escolheu um modo peculiar de narrar a história do país. Para ele, o Século XVI devia ser chamado de Século I do Brasil, com o XVII sendo o II, o XVIII o III, sendo, portanto este século XXI simplesmente VI do Brasil.
Para Oliveira Viana, os Setecentos foram o Século III, o que nos empurrou definitivamente para o futuro, pois fora o século do ouro, do diamante, do Aleijadinho, o da Conjuração Mineira, o dos poetas Santa Rita Durão, Basílio da Gama, Cláudio Manuel da Costa, Antonio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, o de Tiradentes.
De outro modo não pensou o professor C. R. Boxer, do King's College, da Universidade de Londres que no excelente livro "The Golden Age of Brazil" - "O ano de ouro do Brasil" - 40 anos depois do mais conhecido trabalho de Oliveira Viana - "Populações Meridionais do Brasil" - chamava esse mesmo período de "idade do ouro", no duplo sentido de ter sido o da grande produção do metal mas também o da importância daquela conjuntura histórica da colônia. O ouro brasileiro enriqueceu setores decisivos da Europa de então e ajudou a financiar a revolução industrial da Inglaterra.
O jovem Cláudio Manuel da Costa foi estudar em Coimbra, o que era normal acontecer com filhos de famílias mais ou menos abastadas, e lá ingressou no movimento arcádico, reação ao gongorismo da época. Esse movimento surgira em 1790, fundado por um grupo de quatorze poetas, que freqüentavam o salão que a Rainha Cristina da Suécia mantinha em Roma.
Da Itália logo se expandiu o arcadismo pelos países latinos, vindo chegar a Portugal no século seguinte. É conhecida a história daquela rainha nórdica e de sua importância na literatura latina de então. Lembre-se que o nosso Antonio Vieira, quando em Roma, esteve e falou no Palácio de Cristina que, depois de haver sido rainha em sua terra, assumira o papel de mecenas na cidade eterna.
No momento em que as arcádias se tornaram realidade em Portugal, lá estava Cláudio Manuel da Costa, que, nascido perto de Mariana, Minas Gerais, estudava em Coimbra. A arcádia fora uma região da Grécia cujos habitantes, em geral pastores, eram hábeis no canto e na flauta. Cláudio Manuel da Costa mergulhou na poética da moda, passou a ver pastores e deuses gregos nas margens do Mondego.
Sentia-se infeliz por não poder transplantar para Minas Gerais as imagens daquele "paraíso de inocência e felicidade", tal como fora a Arcádia grega classificada e como os árcades de Portugal viam sua terra. De volta ao Brasil, quisera ser padre, mas não conseguira inscrever-se no seminário de Mariana, aquietando-se em Vila Rica, onde continuou fazendo o que mais sabia e queria fazer: poemas. Melancólicos e líricos, são dele alguns dos melhores sonetos da língua portuguesa. Dirigia-se à natureza, como no seu belo soneto que tem estes quatro versos:
"Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento,
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é que de compaixão sois animados."
Ou no soneto de amor que diz:
"Nize? Nize? Onde estás? Aonde espera
Achar-te uma alma que por ti suspira;
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera".
Embora obediente aos cânones arcádicos, procurou o poeta, no poema "Vila Rica", abandonar o espaço pastoril da Europa e mostrar realidades brasileiras, como as descrições que faz de um engenho de açúcar e da cata do ouro:
"Da mole produção da cana loira
Verdeja algum terreno, outro se doira."
E, logo depois, fala na "ardente fornalha" e nos "brancos torrões" que sofrem "estímulos do fogo". Em outros versos descreve os serviços que o trabalhador nas minas faz nas serras e morros para a extração do ouro e canta a forma:
"Com que o sábio mineiro entre o cascalho
Busca o loiro metal."
Estávamos em 1789. Participe do movimento da Conjuração de Vila Rica, foi preso no dia 25 de junho, interrogado pelos esbirros e beleguins de então a 2 de julho e, a 4 de julho, encontrado morto na Casa dos Contos, em que estava preso. Suicídio?
Foi o que disseram, mas duas provas pelo menos indicam ter sido assassinado. É que não podia haver missas para quem se suicidasse. No caso do poeta, a Irmandade de São Miguel e Almas mandou celebrar missa por ele, paga pela Fazenda Real, o mesmo acontecendo com a Irmandade de Santo Antonio, que se responsabilizou por outra missa.
Qualquer que haja sido o modo do seu fim, o poeta Cláudio Manuel da Costa foi um mártir da independência brasileira. Como Tiradentes.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 28/07/2003