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Presença de Adonias

 

Os símbolos da arte ficcional de Adonias Filho foram o sangue, o rifle, o punhal, a mulher, a montanha, a floresta, os arruados, a fogueira, o caminho, as andanças - tudo o que provém do nomadismo de um período da história do homem e da violência primitiva implícita nesse nomadismo. Por isto, seus romances não têm um ritmo cadenciado que se destine a proporcionar repouso ao leitor. Não. Para ele não havia descanso. Seus livros costumavam ser feitos num só hausto.


 


Relendo-os hoje, vemos que eles começam por onde terminam, terminam por onde começam, e suas figuras humanas se misturam em lutas incessantes e se integram numa unidade de personagens de âmbito solidamente marcado, como se relances de tragédias tivessem sido gravadas visualmente para consumação do leitor.


 


A altitude da narrativa chega às vezes a tal ponto de beleza universal que somos capazes de estranhar quando o romancista fala em Ilhéus e Itabuna. Não que a humanidade que habita seus livros não seja passível de tipificação geográfica, mas a veemência de sua linguagem simbólica como que nos deixa inermes diante da descoberta de que tudo aquilo se passa no Brasil.


 


Ao longo de mais de meio século de uma atividade permanente de crítica literária, devo ter escrito umas duas dezenas de artigos sobre seus romances e em todos procurei destacar o tom de poesia que sua narração revelava. Romance e poema são no fundo uma coisa só e não foi à toa que um poeta e ficcionista da força de Robert Graves rejeitou as racionalizações da obra de arte ao afirmar que elas afastam o escritor do que é essencial.


 


Entre "Invenção de Orfeu", "Romanceiro da Inconfidência", "O caso do vestido", "Gabriela", "Crônica da casa assassinada" e "Corpo vivo" - para citar três poetas e três romancistas que falam poeticamente - pode a diferença ser o ângulo, de técnica, de grau, mas nunca por causa de uma separação específica. O "Corpo vivo", de Adonias Filho, está na linhagem da narrativa heróica e da canção para exaltar feitos que recebemos de Homero e dos poetas anteriores à época do predomínio da lógica.


 


Desejo chamar a atenção para o livro da professora Thereza da C. A Domingues - "As múltiplas faces de `Os servos da noite', de Adonias Filho" - que a Editora UFV acaba de lançar. Trata-se de um excelente estudo em que a autora faz uma leitura mítica do romance "Os servos da noite", de Adonias Filho.


 


Thereza Domingues relaciona o romance de Adonias com a trilogia de Oréstia de Ésquilo, composta pelas trilogias "Agamêmnon", "Coéforas" e "Eumenides" e com a trilogia de Sófocles sobre os Labdácidas: "Édipo-Rei", "Antígona" e "Édipo em Colono".


 


Todo o amor e o ódio capazes de existir entre uma determinada mulher e um determinado homem são a base de tragédias muitas, e é uma delas que a autora das múltiplas faces de um romance analisa, minuciosamente, quase dolorosamente, destacando uma sucessão de cenas de violência que refletem a luta ancestral e, em muitos casos, ininterrupta, entre o ciclo matriarcal e o ciclo patriarcal.


 


A linguagem de Adonias tem vários lados. Seus substantivos ganham caras diferentes ao longo do ódio entre a mulher e o homem, seus adjetivos, traços e originais, marcam significados decisivos na história, e até os elementos meramente indicativos de frases, os artigos, as copulativas, se cosem em tessituras fora do comum.


 


Desde o começo do romance, as brigas físicas, com o homem agredindo o ventre da mulher que esperava filho de outro homem, criam um ambiente descritivo em que não existem sons ou sentidos desnecessários.


 


Um contraponto de ângulos de aspectos da história, tais como os vêem os personagens todos do romance, vai tecendo as narrativa como paciência e precisão, tornando-a em breve uma extensão inconsútil.


 


Vale a pena que seja lido um livro como o de Thereza Domingues, obra que a autora fundamentou na psicologia junguiana. Na Introdução que escreveu para a mesma, diz: "Ao analisar `Os servos da morte', primeiro romance de Adonias Filho, ficamos seduzida pelo mundo primitivo que nele se apresenta e constatamos que o abismo da psique das personagens chega a dimensões muito profundas.


 


Ao verificar que estávamos diante de uma obra de tal natureza, não nos restou senão olha-la à luz da mitologia grega e de elementos intertextuais com as tragédias de Ésquilo e Sófocles".


 


As múltiplas faces de "Os servos da morte", de Adonias Filho, de Thereza da C. A Domingues, sai sob a égide da Editora da Universidade Federal de Viçosa. Prefácio de Maria Cristina Pimentel Campos, revisão lingüística de Ângelo José de Carvalho. Editoração eletrônica de Miro Saraiva. Capa de Miro Saraiva e Constança Bezerra Albino Chaves.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 08/08/2006