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Preces em vão

 

Domingo passado (6), durante a apuração dos votos para a Prefeitura de São Paulo, duas senhoras, secundadas por aderentes hipnotizados, pararam a avenida Paulista com suas orações a Deus para que Ele fizesse Pablo Marçal vencer e salvar o Brasil do comunismo. As preces, de joelhos, sobre uma bandeira do Brasil e em alta voz, não podem ter sido ignoradas por Aquele a quem eram dirigidas. Deus é onipresente, está em toda parte, logo estava na Paulista naquele momento. É também onisciente, ou seja, ouve, vê e sabe tudo, donde nenhum gesto ou palavra das ditas senhoras Lhe escapou. E, como é onipotente, nada Lhe é impossível —e, se não deu um peteleco na urna eletrônica e virou o jogo a favor de Marçal, foi porque não quis.

Estaria Deus torcendo por Ricardo Nunes? Por que não? Nunes, afinal, é ou era ligado a Jair Bolsonaro, campeão mundial do uso de Seu santo nome em vão com o slogan "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O problema é que Bolsonaro nunca confiou em Nunes e, ao sentir que Marçal estava atropelando na reta final, pulou para cima do muro e esperou para ver com quem iria ficar. Bem, se o próprio Bolsonaro estava na dúvida, Deus deixou por conta dos eleitores —e eles preferiram Nunes a Marçal.

Mas, se foi Guilherme Boulos quem ficou em segundo lugar e não Marçal, isso significa que Deus torceu mais por Boulos que por Marçal? Não. Deus podia estar apenas dando às pessoas o direito ao seu livre-arbítrio, como está na Bíblia, e, se os paulistanos também preferiram Boulos a Marçal, não era mais com Ele. Além disso, Deus sabe que aquele foi apenas o primeiro turno da eleição e, nas próximas semanas, Ele terá bastante tempo para acompanhar os debates e decidir em quem vai votar.

O problema são as tais duas senhoras e muitas outras como elas. Apaixonaram-se por Marçal, pelo seu verbo, seu estilo messiânico e sua chama anticomunista, que lhes incendiou o coração. Para elas, se Bolsonaro tivesse apoiado Marçal, Deus o levaria à vitória.

Se Bolsonaro não fez isso, é porque é comunista. Daí que, para se vingarem dele, estão até pensando em votar no Boulos.

Folha de São Paulo, 09/10/2024