Josué Montello era um narrador excepcional. O autor da frase é Alceu Amoroso Lima, por muitos considerado o maior dos nossos críticos literários. De fato, o escritor maranhense, autor de mais de cem livros, foi uma das mais férteis e bem-sucedidas carreiras da literatura brasileira.
Conseguiu o milagre de aliar a sua inequívoca vocação literária com uma série de belas incursões na vida pública, em que acumulou bons serviços a Juscelino Kubitschek na Presidência da República, na direção da Biblioteca Nacional e na Embaixada do Brasil na Unesco, em Paris. A que se pode agregar os dois anos de presidência da Academia Brasileira de Letras, sucedendo Austregésilo de Athayde, e realizando uma obra fundamental de restauração da Casa de Machado de Assis.
Dono de prodigiosa memória, capaz de recitar de cor diversos poemas de Machado de Assis, como o clássico "A Carolina", também se servia das ferinas quadras de Emílio de Menezes, quando precisava alfinetar algum desafeto, invejoso da sua obra. Não cultivou inimigos, mas teve uma encrenca histórica com Guilherme Figueiredo, por desavenças ligadas à representação diplomática brasileira na França. Foi à forra, como sempre fez com os que não apreciava: deixou-os mal nos vários "Diários" (da Manhã, da Tarde, do Entardecer etc.). "Assim, a história lhes fará justiça, quando eu não mais estiver por aqui."
Filho de um rigoroso pastor protestante, casou cedo, teve duas filhas que sempre adorou, e encontrou em Yvonne a sua grande e definitiva musa inspiradora. Ela foi não só a sua grande companheira, como uma colaboradora eficaz, pois vezes sem conta datilografou os seus originais. Escreveu a sua vasta obra numa pequena máquina portátil e, em muitas ocasiões, à mão mesmo. A versão final era dada por Yvonne, que, no entanto, ao contrário da Carolina de Machado de Assis, nunca mexeu nos seus originais.
Quando se brincava com a sua fecundidade, Josué atribuía ao pouco sono com que foi brindado pela natureza: "Durmo somente duas ou três horas por noite e isso é suficiente". Acordava diariamente antes das 4h, esquentava o café que lhe era deixado de véspera pela bem-amada, e começava a trabalhar, com um pormenor: o fato de estar elaborando um novo romance não evitava que cultivasse, religiosamente, o hábito de responder às suas centenas de fãs. A todas dedicava uma palavra de carinho. Devia ter o maior fã-clube literário do país.
Vaidoso, sentiu uma sensação de plenitude quando recebeu a notícia que o seu clássico "Os Tambores de São Luís" foi considerado pela Unesco como um dos patrimônios culturais da humanidade. Raros são os brasileiros que alcançaram essa glória.
Ganhou o Prêmio de Literatura do Ministério da Cultura, no ano de 1998. Embolsou R$ 25 mil, com o meio sorriso que lhe enfeitava os lábios, e jamais confessou o que fez do dinheiro. Sobre essa matéria, moita total.
Numa visita à Universidade de Estocolmo, sentiu natural curiosidade. Queria saber quais eram os autores brasileiros mais lidos pelos estudantes suecos. Entre os poucos preferidos, Josué Montello figurava com brilho, em virtude do seu consagrado "Os Tambores de São Luís", romance que retrata uma dinastia de negros, todos com o nome de Damião, ao longo de três séculos da movimentada história maranhense.
Josué nasceu em São Luís, no dia 21 de agosto de 1917, mas viveu no Rio desde 1936. Sempre manteve rigorosa fidelidade às suas origens. Escreveu com o sabor natural dos locais e dos sons da sua infância e juventude, daí o interesse universal das suas obras.
Lembro o inesquecível Adonias Filho. Um dia, na Academia Brasileira de Letras, me disse que, quando escrevia, sentia-se como se estivesse vivendo o transe de um médium. Assim também era com Josué Montello, com quem tive o privilégio de conviver muitos anos na redação de "Manchete". O seu romance, "O Baile da Despedida" (Nova Fronteira, 1992), que li de um só fôlego, reflete a facilidade incomparável em que as idéias desciam da cabeça à mão da escrita, "ao mesmo tempo que todo o seu encadeamento me vem à consciência, refulgindo como o clarão". Poucos romancistas brasileiros tinham a sua fluência, "a feição do barco que desliza pela superfície do lago, tangido pela aragem matinal" (expressão do próprio escritor).
Em companhia de Rachel de Queiroz, João Condé e José Sarney, visitamos a Casa de Cultura Josué Montello, na São Luís da sua permanente inspiração. No casarão da rua das Hortas, totalmente restaurado, são promovidos estudos, pesquisas e trabalhos em literatura, artes, ciências sociais, história e geografia, utilizando-se de um acervo bibliográfico-documental de 30 mil peças.
Com toda naturalidade, enquanto mostrava pormenores da sua casa de cultura, Josué falava dos novos planos, como se a sua veia romanesca fosse mesmo infindável: "Estou preparando outros romances. Enquanto houver fôlego, idéias não faltarão".
A produção é impressionante, pois a quantidade não prejudicou em nenhum momento a indispensável qualidade, em obras que se dividem em vários gêneros, como romance, ensaio, crônica, história, antologia, educação, novela etc. Por ele, os tambores de São Luís tocam de forma permanente, em sinal de respeito, reconhecimento e regozijo.
Na Academia
Tinha pela ABL um amor completo. Nela entrou, eleito para a cadeira nº 29, em 4 de novembro de 1954, na sucessão de Cláudio de Sousa. Foi recebido por um querido amigo, Viriato Correia. Filho do pastor Antônio Bernardo Montello e de Mância de Souza Montello, estudou em São Luís na Escola Modelo Benedito Leite e no Liceu Maranhense, onde concluiu o curso secundário, como primeiro aluno. Até 1936, colaborou nos principais jornais maranhenses. Nesse ano, mudou para Belém, onde publicou, em colaboração com Nélio Reis, seu livro de estréia. Colaborou em vários jornais e revistas, e assinou críticas teatrais em "A Vanguarda".
O seu primeiro romance é de 1941: "Janelas Fechadas". A convite de Rodolfo Garcia, planejou a reforma da Biblioteca Nacional, que veio a dirigir em 1947. Em 1953, deu aulas na Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru. Lá foi professor de Vargas Llosa. Colaborou no "Jornal do Brasil" de 1954 a 1990. De 1969 a 1970, foi conselheiro cultural da Embaixada do Brasil em Paris, cidade a que voltou, de 1985 a 1989, para ser embaixador do Brasil junto à Unesco.
Folha de São Paulo (São Paulo) 17/03/2006