Não pensem que foi por estar próximo ao final de ano, quando se diz que é hora de fazer revisões ou mudanças. Nada disso. De repente, me deu aquilo que o povo chama de “cinco minutos”, repentino ataque de coragem e joguei fora papéis, recortes, cadernos, fotos, anotações, caixinhas, vidrinhos, bibelôs que nem sabia ter. Há dias, olhei para uma caixa e me perguntei: o que tem ai? Abri e dei com pacotes de papel pardo, embrulhinhos, envelopes.
Assim, abri minha caixa. Dela, saltaram pacotes, pacotinhos, envelopes. Os pacotes, lembrei-me, são de primeiras edições de livros meus, embalei para que não fossem atingidos pelo tempo, por roedores, poeira, umidade. Como se roedores recuassem diante de uma folha de papel pardo!
Porque esta carta ficou perdida em meio a outros envelopes, papéis, contas, rascunhos, marketing, folhetos. Liguei para o número. Tocou, tocou. Nada. Liguei de novo à tarde. Nada. Foi na semana anterior ao Natal. Talvez a família tivesse viajado. Agora, estou apreensivo. O telefone toca até cessar de repente. Mas subitamente Livio me liga. Ou não mais. Se, em 2011, ele tinha 87, pode estar hoje com 96.
Nestes esquecimentos ou deixar para amanhã, tenho tido baques, como dizia minha mãe. Eu era fã da atriz Gilda Nery, que fez sua carreira na Cinematográfica Vera Cruz. Mais que isso, paixão. Um dos sonhos quando vim para São Paulo era conhecê-la. Namorá-la. Nos vimos em estreias, festivais de cinema, no Gigetto, onde todos se reuniam. Tímido, nunca me declarei. Os anos passaram, não soube mais dela. Mudou-se para o Rio. Um dia, consegui o telefone, não liguei. Anos depois, chamei. Ela tinha morrido em 2004, aos 69 anos.
Outra a quem fui ligado fortemente foi Ruth de Souza. Mulher altiva, engraçada, bonita, excelente atriz. Premiada em Veneza com Sinhá Moça. Nos festivais de cinema do interior, estávamos sempre juntos, quando nos pediam autógrafos. A mim, não sei porque, mas, como jornalista, estava no meio de artistas, deviam achar que eu também era. Então, eu assinava Ruth de Souza ou Norma Bengell ou Marlene França. Hoje, não se pedem autógrafos, se fazem selfies. Norma era engraçada. Quando chegava um chato que gruda, ela assinava o nome completo na cadernetinha: Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea Bengell. Depois que Ruth mudou-se para o Rio, perdemos contato. Pouco tempo atrás, um jovem, Ygor Kassab, apareceu em casa fez uma entrevista, estava escrevendo a biografia de Ruth, então com 98 anos. Deu-me o telefone dela. Chamei? Antes que eu ligasse, ela morreu. Custava ela ouvir a voz de um amigo de juventude tão próximo?
Desta caixa, saltou um envelope recheado de bilhetes. “Ligue-me urgente. Lucia Camargo.” Ela foi secretária de Cultura em Curitiba, teve grande atuação em sua época. Respondi? O que ela queria? Onde está Lucia? Outro, escrito à mão, meio apressado. “Em Morretes, desça do trem, venha comer um Barreado. Assinado Douglas Brito.” Lembro-me que tomei o trem em Curitiba rumo a Paranaguá, na época eu que escrevia a biografia de Avelino Vieira, fundador do Bamerindus, início dos anos 1990. Desci em Morretes, comi o famoso Barreado, adorei, peguei o trem e voltei a Curitiba, nem fui a Paranaguá. Mas estava sozinho. Quem é o Douglas?
Cartões e mais cartões de visita. De Gilbert Aca, do Poder Judiciário. O que fiz? De Evangelina Novaes, tabeliã de notas de Pato Branco, Paraná. O que fui fazer lá? Bilhete de Wilson Bueno: “Me ligue logo, estou no 225-71-17”. Nossa, ele morreu em 2010. Liguei, nos encontramos
Finalmente, um mistério. Um cartão do Hotel Buci Latin, de Paris. “Te esperei até às oito, você não veio, fui embora. Nunca mais”. Assinatura ilegível. O hotel conheci, era um duas estrelas, barato. Mas o Google me diz que agora é um quatro estrelas, fechado temporariamente pela pandemia. Quem me esperou e se foi? Olho o montão de caixas. O que há nelas? Outros pequenos e insignificantes mistérios? Ou significantes? Um deles teria mudado minha vida?