Participei, na qualidade de fedelho recém-saído da adolescência, patrulheiro, intolerante e panfletário destemperado, do tempo em que a palavra “alienado” era das mais usadas para quem quer que falasse em outra coisa que não o imperialismo norte-americano, a existência ou não de uma burguesia nacional e a caracterização da realidade política rural como feudalismo, além de uns poucos assuntos correlacionados. Era difícil endereçar insulto intelectual mais desdenhoso ou mesmo contundente, a ponto de haver gente que saía no tapa depois de ser chamada de alienada. Como a maior parte da turma, no fundo, só pensava de verdade em mulher, alguém acabava não agüentando e falando em mulher mesmo, mas tinha que ser cuidadoso.
- Eu não sou alienado - preambulava o infeliz - mas vocês viram o lance em que a Betinha mostrou as pernas na reunião do comando da greve ontem, enquanto Nemésio estava fazendo um discurso esculhambando Trotski? Ela estava sem anágua e, quando deu aquela cruzada de pernas, bem na hora em que eu ia pedir uma questão de ordem, quase que eu tenho um troço. Se eu fosse alienado...
Não havendo a declaração prévia da não-alienação, configurava-se falta gravíssima, às vezes punida por ostracismo temporário, principalmente se o declarante tinha mais chances com a Betinha do que nós, outros. O policiamento era severo e até quem bebia Coca-Cola era visto com maus olhos em certos círculos. Era a “água negra do imperialismo”, cuja ingestão não só constituía prova marcante de alienação como pressupunha subserviência à odiosa cultura americana, que todos professávamos abominar, embora imitássemos o jeito dos atores de cinema americanos mais populares, fosse no penteado brilhantinado, fosse falando com um cigarro aceso pendurado no canto da boca, como Humphrey Bogart ou Frank Sinatra.
Isto me ocorre agora, depois de uma leitura aligeirada dos jornais. Não que eu seja alienado, é claro, mas fica difícil manter o equilíbrio mental diante dos pavores narrados e previstos várias vezes em cada página. Pensei penosamente em não assumir a alienação, diante do que foi descoberto numa penitenciária do Rio, do terrorismo financeiro generalizado e do dólar entrando em órbita, das dúvidas cruéis sobre em quem votar, das novas quadrilhas e falcatruas descobertas, de acontecimentos e situações escandalosas e de novidades como as que nos chegam da Europa moderna. Resolvi assumir.
Mas a última novidade eu conto, nem que seja para provar que minha condição de alienado é provisória e vai passar. Não sei se vocês leram (como sempre, parece que quem leu fui eu somente) que a moda agora, pelo menos na Holanda e na Inglaterra, é brincar de pobre miserável e indigente. Há firmas que, por uma quantia que só rico pode pagar, pegam o interessado e o transformam em desabrigado e mendigo, só para ele ou ela curtirem pedir esmola, dormir no frio debaixo de um cobertor esfarrapado e pedinchar um prato de comida junto às latas de lixo dos restaurantes mais à mão. Suponho que o sujeito pode desistir até na primeira noite, mas não tem o dinheiro devolvido e provavelmente será execrado, por si mesmo e por sua patota, pela falta de espírito esportivo, ou falta de caráter mesmo, até porque, para quem desenvolveu o gosto (e sabe que vai voltar a seu conforto antigo assim que passar a aventura), se trata de um grande barato, superior, quiçá, aos do Indiana Jones.
Segundo me parece, a idéia foi lançada por empreendedores que observaram as últimas tendências turísticas. Tem havido, na Europa, um acentuado aumento da procura não de lugares cheios de glamour e atrações milionárias, mas lugares paupérrimos. No caso do Brasil, os grupos excursionistas exigem cada vez mais uma passagem pelas favelas mais carentes. Ou escolhem sentir a atmosfera estimulante de locais como o famoso Buraco Negro de Calcutá, que, se não existe, acaba sendo instituído pelo governo hindu, como fonte adicional de divisas. Cheguei a pensar em apresentar aos candidatos a idéia, que pode ser genial: solucionar a miséria brasileira através de seu fomento. Nada de erradicar a pobreza, mas estimulá-la. E até instituir um programa especial para ingleses, holandeses e quem mais aparecer, a fim de que eles venham curtir sua temporada de miséria aqui, em vez de Amsterdam, por exemplo, onde, a esta altura, já devem estar pensando em acarpetar certas calçadas para melhor acomodar a pobreza amadora, e ninguém toca fogo em mendigo. Aqui seria um sucesso, pelo menos antes da criação do Imposto sobre Operações Mendicantes, da Comissão Nacional do Desenvolvimento da Pobreza e assim por diante.
Mas não. Chega, pelo menos por hoje, de assuntos sinistros, ou seja, o nosso cotidiano coletivo. Posso não ser alienado, mas hoje estou alienado. Minha principal preocupação, no momento, é o sumiço de Herculano, o gavião que costumava visitar cortesmente o terraço aqui de casa. Nunca mais apareceu e, pior ainda, tenho um suspeito: um companheiro de boteco, cujo nome omito por ele ainda não ter culpa formada, que é passarinheiro, alega que Herculano ataca e come os passarinhos engaiolados que mantém, e jurou vingança. É por essas e outras que o Brasil não vai para a frente, pois que outra conduta esperar de um gavião, a não ser gavionar? E quem manda ter passarinhos engaiolados, privados ilegalmente de sua liberdade, sem ao menos um celular para nele chilrearem, como qualquer presidiário?
Aqui no terraço, não. Aqui persistimos em manter livre o nosso vistoso elenco de bem-te-vis, sanhaços, sabiás, rolinhas, beija-flores e outros pássaros. O espaço cultural continua a funcionar e já sei até o horário de aparecimento dos freqüentadores mais rotineiros, como Felipão (ficou, acho eu, um pouco metido a besta depois do penta, mas ninguém é perfeito), o bem-te-vi parrudo de quem até mesmo Herculano mantinha uma distância respeitosa, porque bem-te-vi não dá moleza nem para gavião. E os beija-flores não beijam flores artificiais, dessas abastecidas com água e açúcar; aqui são flores mesmo. A população do terraço é toda natureba e faz bem acompanhar seu dia-a-dia. Uma dose de alienação, ainda que mínima, tem seu lugar. É o que confirmo agora, até mesmo porque não confessei na hora, mas também peguei o lance das pernas da Betinha.
O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 11/08/2002