Embora não se possa dizer que seja sensata uma pessoa que tem como ídolo o coronel Brilhante Ustra, denunciado formalmente como torturador, e aceita a tortura como arma de guerra, o vice-presidente, General Hamilton Mourão, tem defendido teses razoáveis desde o início do governo. E teve o cuidado de, eleito, não voltar a temas como a tortura, ou o autogolpe, que abordou na campanha presidencial.
Aliás, foi nessa posição que Mourão trombou com Bolsonaro, ao ser revelada uma das propostas em estudo para conter as queimadas e as grilagens na região. “Expropriar propriedades rurais e urbanas acometidas de crimes ambientais ou decorrentes de grilagem ou de exploração de terra pública sem autorização" seria permitido através de uma emenda constitucional (PEC), uma demonstração cabal de que o governo estava se mobilizando para evitar o que hoje acontece na região.
Bolsonaro, colocando-se como defensor da “propriedade privada sagrada”, ameaçou de demissão quem propôs tal medida, e disse que só não demitiria se a pessoa fosse “indemissível”, numa referência clara ao General Mourão, que foi eleito pelo voto direto junto com ele e não pode ser demitido do governo. Mas pode ser demitido da coordenação do Conselho da Amazônia, o que Bolsonaro não teve disposição para fazer. Ainda.
A reação extemporânea não se justificava, pois, além de ser uma proposta de trabalho, não uma decisão, não é possível confundir “propriedade privada” com terras invadidas. Mesmo tendo se penitenciado pelo vazamento do documento, Mourão não aceitou o conselho de seus pares militares, que sugeriram que ele evitasse entrevistas para não entrar em confronto com Bolsonaro.
Um conselho disparatado, pois quem agiu fora de esquadro foi o presidente. Mourão, ao contrário, representa um lado da turma do Bolsonaro com mais noção da realidade, e mais preparado para enfrentá-la. Como Bolsonaro é despreparado e descontrolado, a chance de ele não terminar o mandato sempre existe, seja por qual motivo for. Por isso é bom que Mourão dê um aceno de vez em quando, para mostrar que existe uma alternativa mais equilibrada, o que é bom para a democracia.
Sempre que pode, o vice-presidente separa sua opinião pessoal do cargo que ocupa, mas quase nunca se exime de dar sua opinião. Hamilton Mourão, na física, reconheceu a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos em entrevista à Rádio Gaúcha, fazendo questão de afirmar que “não responde pelo governo brasileiro”. Não responde, é certo, mas pelo menos dá a sensação de que existe vida inteligente dentro desse governo, que resiste a aceitar a derrota de seu grande líder Donald Trump.
“Como indivíduo, eu julgo que a vitória do Joe Biden está cada vez mais sendo irreversível.” Mourão também deu opinião sobre a questão política entre os militares. Apoiou o Comandante do Exército Edson Pujol que, em uma live promovida pelo Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa, disse: “Não queremos fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis”.
Pujol respondia a uma pergunta do ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, integrante do instituto, sobre o papel dos militares na política. Jungman é um estudioso do papel dos militares na sociedade brasileira, e se preocupa com a tendência à militarização do governo, com nove militares, da ativa e da reserva, fazendo parte do ministério, e outros milhares espalhados pelos escalões da República, muitos onde não deveriam estar, como é o caso recente do Tenente-Coronel da reserva Jorge Luiz Kormann para uma diretoria da Anvisa, sem a menor condição técnica de ocupar o cargo, ainda mais neste momento de pandemia.
O comandante do Exército sempre foi contrário a essa mistura, mas nunca havia feito uma declaração formal nesse sentido. E foi apoiado por Mourão.