Diante das eleições de outubro próximo, a polêmica brasileira fixa-se, de mais em mais, sobre a permanência, ou não, da atual política econômico-financeira como premissa para o próprio futuro da chapa presidencial. O ministro Palocci terminou por vencer todas as escaramuças de derrubada, e sua sustentação assimila-se à de como o País é visto nos rumos da globalização. Com que outras cartas conta o Governo em 2006? Por entre a poeira das disputas do mensalão, do desapontamento com o pior Congresso da nossa história política, ou do acórdão do descrédito final, deixamos, às vezes, de lado, os trunfos da política exterior.
Celso Amorim, em Hong Kong, contra todas as Cassandras, logrou à última hora um começo de vitória, quebrando o jugo do protecionismo do Primeiro Mundo, a partir da teimosia francesa, e tendo, até, a aliança americana para o nosso comércio vencer as resistências da OMC. Olhamos para o desempenho do PNB, desligado dos resultados das exportações e do superávit primário em nosso balanço de pagamentos. Não damos, talvez, suficiente atenção à inédita baixa do risco-Brasil, retomando às velhas seguranças, à performance de há mais de uma década.
Claro que nessa dimensão externa todos os focos se voltaram para o pleito continuado por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança. O Brasil se juntou à reivindicação do Japão, da Índia e da Alemanha. Significativamente, agora, ao dobrar do ano, Tóquio se recusa à nova investida, capitaneada pela determinação do nosso chanceler. É que a resposta, afinal, a prazo médio dos Estados Unidos acena à entrada japonesa, o que desfalca o bloco de pressão para quebrar o impasse no ano que entra. O status quo deve permanecer diante do apoio europeu ao efetivo exit das Forças Armadas americanas no Iraque, reduzindo as chances do outro parceiro, o governo de Berlim.
O próprio Tony Blair já marcou as agendas para retirar do seu país as tropas de Bush. A ocupação vai se cifrar às novas fidelidades a Washington do Leste Europeu. A partir da Polônia, o que se configura hoje, no equilíbrio internacional, é a satelitização, meia volta volver, da antiga polarização moscovita. Os novos bloqueios no avanço da federação mostram o quanto se perdeu o ritmo da "Europa dos 6" e dos sucessos acelerados da derrubada aduaneira, e da vigência do euro, como moeda forte, batendo o dólar. Atenua-se o poder de barganha do Velho Mundo como ator rival no Primeiro Mundo, na "Europa dos 25" e da dependência americana dos neoparceiros.
O primeiro grande símbolo de mudança do governo Lula foram as alianças iniciais com Pretória e Nova Déli, de onde, inclusive, surgiram as primeiras derrubadas, em Cancún, no projeto da Alca e da política primeiro-mundista da OMC. Persiste o grande amplexo, e apesar, hoje, das mudanças de governo em Nova Déli, ou das novas dificuldades da União Africana no governo Mbecki. O Itamaraty reforçou as relações com a China, ao mesmo tempo em que saiu, em nosso continente, da "prisão sob palavra" ao Mercosul. As quizílias obrigatórias com Kirchner não impedem que o futuro das conversações no Prata voltem-se, decisivamente, para o resto da América do Sul. Isto diante da superação da antiga idéia de uma União Andina, e do contraponto à franca dinâmica mercadológica que hoje associa o Chile e o próprio México, não só à Alca, mas sobretudo ao largo comércio com o Pacífico. Lula tem sabido enfrentar a emergência no continente, a partir da Venezuela, de uma revolução bolivariana de resistência aos Estados Unidos, apoiado, basicamente, do peso das reservas petrolíferas em mãos do Estado, e da estratégia de Chávez.Numa política de morder e assoprar, o Itamaraty atraiu a Bolívia de Morales, na flexibilidade das novas negociações com a Petrobras, desarmando qualquer tentação de enfrentamento ao gigante brasileiro, como se espera de toda lua-de-mel com o poder que começa em La Paz. De toda forma, o essencial é, outra vez, ver-se como mantém o nosso governo o caminho real do nosso desenvolvimento diante das fatalidades apressadas da dita lógica da globalização. Somos, com a China, a Índia e a Rússia, as nações-continente para as quais o efeito do mercado externo será sempre tangente à expansão e à perspectiva da nossa última prosperidade. A explosão de Pequim no mercado internacional hoje não esconde esta opção tática, a se apetrechar com os recursos necessários para entrada numa verdadeira economia de consumo dos seus 2 bilhões de habitantes. É o mesmo risco calculado que levou Palocci a enfrentar as críticas à ortodoxia e à sua dependência ao neoliberalismo de todos os opróbrios. É esse mercado interno dos nossos quase 180 milhões que se transforma na dura, mas decisiva, inflexão deste começo efetivo de redistribuição de renda, definido pelo salário mínimo de 2006, os sucessos do Banco Popular e da poupança para o País dos desmunidos, acompanhada de uma nova e firme intervenção do Estado na infra-estrutura do Brasil urbano. E nele de uma política de emprego que afinal venha à furo no Ministério das Cidades, de longa espera. O mundo lá fora, fugindo às ditaduras internas da nossa opinião pública, continua a ver em Lula o emulo de Mandela na busca da alternativa possível a trajetória desenhada pelo Salão Oval. E o presidente que se reeleja tem na política externa um capital adquirido para uma nova liderança internacional. Sem ou com o assento no Conselho de Segurança.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 13/1/2006