O balanço do processo eleitoral e a iminente vitória de Dilma já levam a inevitáveis revanchismos, todos a escrutinar possíveis contradições na personalidade da candidata. Ou inquirir sobre a sua religião, como condição "sine qua non" para o programa de governo.
Ou, pior, de como "confronta o Senhor Jesus Cristo", conforme artigo publicado recentemente nesta página ("Dilma e o Senhor Jesus Cristo", 9/9). A democracia pergunta e exige, como responde ao bem comum quem vai à função pública.
Interrogar-se-á o eleitor sobre o caráter ou a venalidade do pretendente ao poder, ou a sua conduta contrária ao pluralismo de ideologias ou de culturas.
Vamos às urnas pela primeira vez com o crivo da Ficha Limpa e da proscrição das políticas de clientela, do cinismo imperturbável no exercício do governo.
Este amadurecimento reforça esse imperativo democrático e do que garante só ele, no ganho das liberdades e do Estado de Direito.
Dilma foi à luta armada, no confronto com o autoritarismo militar.Os panteões nacionais não distinguem entre verter-se, ou não, sangue em nossa história pelo prevalecimento de princípios.
Está em causa a determinação primeira desses protagonistas no inconformismo com o estado de coisas, destruidor desse bem comum, indispensável à cidadania.
A chegada de uma guerrilheira ao Planalto responde à integração em nosso passado recente, na mesma e longa conquista pelas primeiras liberdades num país de todos.
A luta contra o governo militar antecedeu o mesmo empenho da saída do limbo dos "sem nada".
A maturação, a longo prazo, da consciência nacional passou pelo confronto com a ditadura, no mesmo ímpeto da superação do descarte social escandaloso do país, a permitir a criação do PT. E este nasceu desta conjugação da ação sindical e da Igreja da Libertação, inspirada no Vaticano 2º.
Não há que se pedir declarações formais de crença a Dilma. Mas cobrar-lhe o que é de indiscutível ordem pública, a primar sobre o que, como estritas convicções de foro íntimo, diz respeito ao aborto, à homossexualidade ou à homofobia. A luta pela vida, por outro lado, é inseparável do desmonte de estruturas sociais que a sufocam, na marginalidade sem remédio.
E é sintomático que as campanhas antiaborto exprimam uma consciência que só vai ao dever particular e nunca se acompanha do clamor pela justiça social, a primeira das verdades evangélicas.
O desagravo revanchista do país "do bem", nestes últimos dias, descamba em ilações fáceis: Dilma, porque guerrilheira, comunista; ou obrigada a declarações de fé que não lhe cobram as responsabilidades de um bom governo.
Deparamos, sim, nas perguntas sobre a crença da candidata a marca ainda renitente desta subcultura brasileira, dos conformismos do velho Brasil. E, para os católicos do Vaticano 2º, exige-se de Dilma o que é estritamente próprio ao exercício político, a responder ao que pede o imperativo do bem comum, à consciência dos homens.
Folha de São Paulo, 1/10/2010