Deseja o autor destas linhas informar, antes de tudo, que há muito esperava fosse este livro - "A deusa branca" ("The white goddess"), de Robert Graves - traduzido no Brasil. Trata-se de um estudo completo sobre a existência da poesia. Pois há poucas semanas "The white goddess" foi aqui publicado em português. Numa de suas primeiras páginas o autor pergunta: "Qual é a utilidade da poesia hoje? A função e o uso permanecem os mesmos, apenas sua aplicação se alterou".
Continua dizendo que: outrora a poesia fora um alerta ao homem de que deveria viver em harmonia com todos os seres viventes que o circundam, por obediência à dona da casa que é a Deusa Branca. Hoje os símbolos da poesia estão desonrados". Mais: "Nela, a serpente, o leão e a águia pertencem ao circo; o touro, o salmão e o javali, à fábrica de enlatados; os cavalos de corrida e os galgos, às pistas de apostas; as árvores sagradas, às serrarias. Na atual civilização, a Lua é desprezada como satélite apagado da Terra e a mulher, considerada como "contingente auxiliar do Estado".
Poeta, ensaísta e romancista, Robert Graves tomou parte na Guerra Mundial, de 1914-18. Na volta, publicou seus primeiros livros, mas, no fim dos anos 20, não mais agüentou a vida em cidade grande e optou por viver em Deya, no centro da ilha espanhola de Maiorca, no Mediterrâneo. Voltando à minha autobiografia, quando, em 1969, assumi o cargo de adido-cultural em Londres, uma das primeiras pessoas que recebi na embaixada foi um jovem chamado Richard Graves, que desejava informações sobre a música brasileira.
Perguntei-lhe se era parente do escritor. "Sou filho", respondeu. Conversamos. Disse-lhe que se o pai viesse à Inglaterra, eu gostaria de conhecê-lo. Retrucou ser difícil uma viagem dessas, mas que eu poderia ir a Deya. "É um arraial. Não tem hotel. Mas dispõe de uma pensão, que pertence a uma cunhada".
Foi assim que, na Semana Santa seguinte, Zora e eu passamos oito dias em Deya. Levei meu exemplar de "The white goddess", da Edição Faber & Faber, no qual, na primeira visita que fizemos a Graves, ele inseriu uma dedicatória em espanhol: "Para los Olintos, Afectuosamente - Roberto Graves - Deyà 1970". Usou seu nome latinizado, com um "o" final (assim era ele tratado na aldeia). Todas as manhãs Zora e eu passávamos cerca de uma hora com ele.
Conversávamos de tudo, a poesia na frente. Lembro-me de trechos como quando, no meio de um elogio à cozinha espanhola, ele deixou o assunto para dizer que no começo era o mito, só depois veio a palavra. Ou a palavra era o próprio mito que se transformava em matéria. Em tudo estava a Deusa Branca, a deusa da poesia, que teve inúmeros nomes e estava ligada à presença permanente da Lua protegendo a Terra.
O subtítulo do livro é "Uma gramática histórica do mito poético". Levanta nele, Graves exemplos da poesia galesa e da irlandesa, em conexão com a poesia dos gregos e dos hebreus, ligados aos mitos e às realidades da Terra, das árvores, dos rios, do mar. Que eram então os poetas? Eram cantores andarilhos chamados de "fili" (videntes).
Nas guerras entre duas comunidades, o poeta de uma e o poeta de outra, isentos da luta, se reuniam na floresta, onde analisavam o que devia ser feito quando a paz voltasse. A posição de um bardo irlandês era, no século VII, assim definida: "Um bardo é alguém que não tem instrução legal, além daquela de sua própria inteligência". E que era o poema? Era um conjunto ritmado de palavras que fazia "eriçar" os cabelos de quem o ouvia.
Poemas e mais poemas, citados por graves, revelam dinastias de poetas que pegaram nas letras e nas palavras, que se adestraram no "eriçar" os cabelos de seus ouvintes, às vezes com o uso de instrumentos musicais, como um poeta do País de Gales cantando: "Sou um bardo de harpa". Sob a inspiração da Musa Lunar, mergulhamos nas palavras, fazemos poesia. Mas Graves alerta: a Deusa é trípice. Segundo três versos antigos, elas são: "Diana nas folhas verdes,/ Lua que tão brilhante resplandece,/ Perséfone no inferno." Assim. Lua, a deusa do Céu; Diana, a deusa da Terra, Perséfone, a deusa do Mundo Mediterrâneo."
Como não ler, tranqüila e prolongadamente, "A deusa branca" de Robert Graves? Lançamento da Editora Bertrand Brasil; tradução admirável de Betto de Lima; capa de Rodrigo Rodrigues.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 17/08/2004