Mergulho nos poemas de Amélia Sparano. É mergulho mesmo, com toda a atenção posta em suas imagens, em suas palavras, em seu ritmo e até em seu silêncio. Entre a leitura de um poema e de outro sinto que o movimento de significados se apossa de mim de tal modo que percebo os dois idiomas em que ela escreve - o italiano e o português - como que se unindo e se mesclando de modo natural.
Poeta capaz de recolher memórias que não se mostram apenas como suas, mas também como das terras que reúne em si - a Itália e o Brasil - consegue Amélia Sparano, numa recolta de versos a que deu o nome de Meditando, ir além das palavras e dos ritmos para pegar um fluxo interno em que se forma a alma do poema. Daí, o conseguir ela também dar toda a atenção ao som poético, àquilo que o aproxima do cântico e de um modo equilibrado e livre que o poema tem não só de ser lido, mas também de ser ouvido.
A beleza da palavra colocada a serviço da poesia alcança, em idiomas ligados mais a vogais do que a consoantes - como o italiano e o português - um nível raro de expressão, inclusive pela força do som. Claro que também outros idiomas possuem sua beleza própria e foi a poesia inglesa que inspirou uma criança africana a dar uma das melhores definições de poesia que existem.
A história foi contada pela escritora dinamarquesa Isak Dinesen no livro "Out of Africa". Em suas noites de solidão no Quênia, onde tinha e dirigia uma fazenda de café, costumava ela (cujo nome verdadeiro era Baronesa von Blixen) ler em voz alta poemas ingleses. Um menino quicuio, de pele negra que brilhava sob a iluminação do teto que trabalhava para ela, ficava num canto, olhando, escutando, quieto. Chegou um tempo em que a escritora passou noites sem ler.
Notou que o menino continuava no seu canto, como esperando, até que ele tomou coragem e pediu: "Madame, fala como chuva outra vez, fala".
Diante dos versos de Amélia Sparano, tanto em italiano como em português, sinto que eles soam como chuva caindo. Em "Caminhando", ela se dirige ao seu companheiro de viagem: "... eu nunca poderei ver com teus olhos/ nem saber se o teu verde é igual ao meu./ Mas teu sol é meu sol." É seu ritmo.
Aos 94 anos de idade, Amélia faz um balanço poético da sua caminhada e diz: "Não alcancei estrelas/ Cato apenas pedrinhas/ Luzidias, coloridas,/ Que brilham no meu chão./ Não plantei vinhas,/ Não cultivo o trigo,/ Não desbravo o sertão./ Meu braço é fraco,/ pequena a minha mão./ E só cultivo flores/ no acanhado espaço/ de meu terraço./ Salpico de gerânios o cinzento/ no topo deste morro de cimento."
"Meditando" colhe toda uma experiência de vida, transformando-a em palavras e ritmos e, colocada entre dois idiomas em que se sente inteira, ergue a poeta cada um deles como propriedades suas, que o tempo foi misturando e levando a um estado de meditação permanente. As palavras que entram na meditação, que a formam e a que dão substância, são as mesmas, embora com dois modos de se apresentar como chuva, vivendo sob as palavras de dois idiomas e conseguindo, em ambos, realizar uma poesia com a convicção de que ela pode melhorar o homem em sua busca de entendimento.
Poeta, sabe que a palavra é divina (este é o começo de um de sem poemas: "A palavra é divina / E fugidia."). É preciso, por isto, dirigi-la a todos, sem parar, como está nestes três versos de Amélia Sparano: "Escrevo, escrevo, compulsoriamente, / escrevo a todos / sem saber a quem". Meditando e escrevendo, Amélia Sparano capta os momentos com que a memória libera e com eles faz uma poesia que passa a existir em nós, com a força de suas palavras, de suas imagens, de seu ritmo ("a poesia é a linguagem que canta", disse Paul Élouard), em cada caso fazendo-nos meditar. Contudo, é preciso pressa, "antes que areia naufrague/ e que se empedre o canteiro".
Como boa poesia, os poemas de "Meditando" fazem bem à gente e conseguem levar-nos a ver um "Deus vivo em toda criatura". Fez-me bem a mim.
Na orelha que Antonio Houaiss deixou sobre Amélia Sparano, chama ele sua obra de "meditações poéticas" que, na leitura, "se incorporam à sensibilidade de quem às lê, de uma forma extremamente forte". Lançamento da Editora Comunitá, sob a direção editorial de Pietro Petraglia, capa e diagramação de Alberto Carvalho, revisão de Cristiana Cocco.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 12/09/2006