Já no Poder Judiciário é todo dia. Como faz pouco, em decisão monocrática e fora de qualquer recurso, quando o ministro Toffoli (que não fazia parte do processo) mandou para casa um corrupto, Prefeito de cidade do Amapá, condenado em última instância com sentença transitada em julgado?
Lisboa. A democracia, segundo o ex-Primeiro Ministro da França Pierre Mendès France 'é, antes de tudo, um estado de espírito'. E, se assim for, quem deveria mandar era o povo. Só que infelizmente, por aqui, esse Poder não somos nós, povo, mas o próprio Supremo. Prometo passar um tempo sem falar dele, fique o leitor tranquilo. Mas não dá para calar, agora. Que este silêncio seria quase cumplicidade.
Ao Supremo, já não basta ser o único Tribunal similar, no mundo, que não é só uma Corte Constitucional. Nem também o único, no mundo, que admite decisões monocráticas. É pouco. Ele, agora, se acostumou a invadir a esfera de competência dos outros poderes da República. Em violação aberta à Constituição, (art. 2º, 'São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário'). E a própria competência, expressa e limitada, do próprio Supremo (art. 102, I 'julgar', II julgar', e III 'julgar', somente.
A esfera do Poder Executivo, por exemplo, invade quase todos os dias. Desde proibir nomeações para cargos a vedar helicópteros voando sobre as favelas. A da semana passada foi dizer que um indulto, concedido pelo Presidente, não vale. Mesmo contra regra expressa da Constituição que lhe confere esse poder de 'conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos institucionais em lei' (art. 84, XII). Sem nenhum condicionamento a qualquer exigência. Segundo o Estadão, é que os ministros 'estão indo à desforra'. E se trata só de 'vingança', palavras do jornal. Assino em baixo.
Já no Poder Judiciário é todo dia. Como faz pouco, em decisão monocrática e fora de qualquer recurso, quando o ministro Toffoli (que não fazia parte do processo) mandou para casa um corrupto, Prefeito de cidade do Amapá, condenado em última instância com sentença transitada em julgado.
Agora, mais uma vez, é o Poder Legislativo. Está sendo votado, no Congresso, um projeto de lei das Fake News. O Ministro Alexandre de Moraes foi filmado levando papéis, segundo a imprensa um Projeto, ou alterações ao que estava em curso, para entregar ao relator Orlando Silva (PCdoB). A rigor não poderia, ética ou funcionalmente. Que, quase com certeza, vai julgar casos com base nessa lei. E deveria ser imparcial. Como a mulher de Cezar (Pompeia Sula), não lhe bastaria ser isento (objetivamente), mas aos olhos de todos parecer isento. E não é, sem dúvida possível.
Mas o que afinal fará agora?, eis a questão. Vai é legislar ele próprio, Supremo, tudo leva a crer. Já fez isso, antes, muitas vezes. Como, em 2019, para criar os crimes de 'homofobia e transfobia', que seriam equivalentes ao de 'racismo'.
Fosse pouco vai fazer ainda mais, a partir do próximo dia 19/05, quando (é o que se diz) vai proibir a demissão de empregados. Sem ouvir o Congresso. Se acharem injustas as atuais leis trabalhistas, senhores, saiam do Supremo e se candidatem. Para apresentar, acaso eleitos, um Projeto de Lei. Mas converter uma Côrte, feita para julgar, em órgão fazedor de leis, é um acinte.
Segundo a Folha SP, nesse caso das Fake News, o projeto 'cria risco de controle estatal'. E O Globo sugere que o Supremo vai invocar suposta 'omissão legislativa'. Só conheço um caso semelhante, no mundo, em que isso (quase) ocorreu. Quando na Itália se retardava na votação do Bozza Mammi (um projeto do ministro das Comunicações, Oscar Mammi). E a Côrte de Cassação notificou, o Congresso, de que não poderia mais ficar naquela posição de 'self restraint' (usou, no ofício, essa expressão norte-americana). O que fez com que a nova Lei das Comunicações italiana fosse logo votada, pelo Congresso. Não sendo preciso criar nada pela Côrte. A pergunta é se, nesse caso das fakes, o Congresso será mesmo omisso. Haverá consenso, no mundo, e estaríamos sem legislar por aqui? Aos fatos, senhores.
Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, não existe uma única lei sobre o tema. Zero. E na Europa? Um país, Alemanha, tem lei sobre o tema, a Netzdg. Outros começaram a copiar. Mas a comunidade Europeia foi logo em frente e já se pronunciou. Quando o provedor não tenha 'Capacidade Editorial', ele é considerado só hospedeiro. Sem que se lhe possa imputar nenhuma responsabilidade. Fora disso, aplica-se a Lei de Imprensa. Tudo segundo o 'Digital Services Act'. Sem nenhuma invenção que possa levar à censura.
Pessoalmente, creio que o tema deveria ser objeto de um tratado. Em que se buscasse a convergência de todos os países. Depois da Primeira Guerra, com a Convenção de Genebra, os países estabeleceram regras uniformes para notas promissórias (1930) e cheques (1931). Antes, no século XIX, acertaram regras para valer nas guerras. Por exemplo protegendo a Cruz Vermelha (depois, também o Crescente Vermelho), para garantir tratamento humanitário aos feridos. Por aí. Em algum momento, vai ser mesmo necessário fazer uma Convenção similar, para o tema. Só que não há nenhum movimento em curso, ainda.
No caso, o Congresso tem o poder de decidir ainda não ser tempo de fazer uma lei como essa das fake news. É direito seu. Por não haver consensos mínimos, ou ante o risco de cair na censura. Tudo sugerindo que melhor seria discutir o tema com mais calma. E mais gente. Em vez de fazer tudo às pressas. E depois votar, ou não. Isso não é 'omissão legislativa', senhores. É só uma decisão, do Poder Legislativo, por não legislar.
Ocorre que o Supremo não ouve ninguém. E vai fazer sua própria lei. A do projeto Alexandre de Moraes, provavelmente. Ou outra, que venha pronta do Palácio de Planalto. Isso está certo? Será bom para o 'estado de espírito' da Democracia? Nossa Côrte maior, que deveria zelar para que a Constituição fosse respeitada, emite sinais frequentes de que está assumindo o protagonismo de outro papel. Por fora dessa Constituição. Para além dela. Recordo comentário de Fernando Pessoa a seu amigo (e futuro biógrafo) João Gaspar Simões, em 11/12/1931, 'Pasmo hoje, com vergonha inútil, de quanto admirei a democracia e nela cri'. Pois é.
Lula nomear seu advogado Cristiano Zanin, para o Supremo, não é uma escolha. É um deboche.