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Plugue deles, tomada nossa

 

Dá gosto ver como velam e zelam por nós. Faz uns dias, de passagem pelo aeroporto de Congonhas, pude observar como um policiamento atentíssimo garantia inteira proteção contra os males do tabaco. Os infelizes que ainda persistiam no feio vício eram obrigados a sair para o ar livre. Se achassem que já estavam ao ar livre e não notavam que um pedaço de marquise os cobria a vários metros de altura, um policial os repreendia com polidez e fazia ver que debaixo de marquise não era ar livre, pelo menos juridicamente. E, assim, não deixava de ser objeto de uma boa foto a visão de uma porção de gente olhando para cima para checar a marquise, e se postando a um passo de sua margem exterior, para só então acender os cigarros.


Claro, não tenho nada com isso e muito menos entendo de questões policiais. Mas, diante da aplicação com que essa lei vem sido posta em prática, não posso evitar uma sugestão, que modestamente passo adiante. Seriam necessários estudos adicionais, mas tenho certeza de que funcionaria. A idéia é induzir os assaltantes a fumar. Uma propaganda cientificamente elaborada e dirigida poderia conseguir isso, a par com iniciativas dos próprios cidadãos, tais como sempre carregar no bolso o cigarrinho do assaltante, assim como muita gente faz com dinheiro. Não há a menor dúvida de que é tamanho o aparelhamento, do ostensivo ao secreto, das brigadas paulistas antitabaco, que os fumantes meliantes seriam capturados em ritmo vertiginoso. É só ter um pouco de imaginação e os problemas mais rebeldes se resolvem.


De algum tempo para cá, havemos testemunhado muitos exemplos de como, seja em nome de nossa proteção, seja por conta de nossa maior comodidade e felicidade, nos regulam a conduta ou nos obrigam a alguma coisa. Já me esqueci dos detalhes, mas a Anvisa andou tomando diversas medidas de vasto alcance, dispondo sobre as mercadorias que serão expostas nas farmácias e assim resolvendo a grave questão da automedicação. Soube também, não sei se é fato, que a venda de cânfora está proibida nas farmácias, bem como a importação de cola de aeromodelismo foi banida. Força para ela, cobertura completa, não se pode querer mais.


Aproveito a oportunidade para não perder o hábito e mencionar o que muitos já esqueceram, mas não vocês e eu. Trata-se do famoso kit de primeiros socorros para motoristas, vocês se lembram. Tornou-se compulsório, da noite para o dia, levar em cada carro o tal kit, sob pena de multas severas e sabe-se lá mais o quê. Claro, já havia kits à venda, quando saiu a medida. Mais ainda, não se podia montar o kit, comprando seus itens individualmente. A tipoia, ou que outro nome se dava a uma tira de pano que compunha o kit, só era fabricada por uma empresa, por coincidência a mesma que produzia o kit. Se não foi assim, foi quase assim. Depois se descobriu que o kit não servia para nada e, ao contrário, podia até matar mais gente. Aí ele foi banido. Todo mundo já tinha morrido nos quinze reais do kit, o fabricante recebeu o seu e nunca mais se falou nisso. O dinheiro deve ter ido para a conservação de nossas estradas.


Há uns dois anos, tentaram também nos ensinar a falar e escrever com propriedade. Oficialmente não era bem isso, mas ia acabar redundando em todo mundo se ver, de uma maneira ou de outra, coagido a usar a politicamente correta nova linguagem, definida numa cartilha. Acabou não dando em nada, mas o mesmo destino não teve o acordo ortográfico a que hoje estamos submetidos. Não conheço quem seja a favor dessas mudanças bestas e, no caso, por exemplo, do hífen, meio sem pé nem cabeça. No Brasil, a obediência foi imediata, mas os portugueses não aceitam que lhes digam mais uma vez o que está certo ou errado e continuam a ignorar o acordo. E, sim, minto ao dizer que não conheço ninguém que seja a favor dele. Quem ganha dinheiro com ele é a favor.


A última novidade já deve ser do conhecimento de todos, embora sem muitos pormenores. O Brasil mostra mais uma vez sua originalidade e independência e adota um tipo de tomada elétrica existente somente aqui. Nenhum aparelho elétrico brasileiro, que eu saiba, poderá ser ligado numa tomada estrangeira. Vice-versa, nenhum aparelho estrangeiro poderá ser ligado em tomada brasileira. No começo, vai haver alguns pequenos transtornos, como, por exemplo, o aumento do número de notebooks jogados pelas janelas de hotéis, mas isso passa depressa e não é por ninharias que o progresso e a afirmação nacionais serão detidos. É evidente que não iríamos nunca aprovar modelos estrangeiros, temos personalidade. Além disso, os governantes são previdentes e a venda de adaptadores para as tomadas antigas estará limitada a três anos. Depois, quem quiser tomada elétrica que mude as velhas que tem em casa, mande fazer nova fiação e tome outras providências que acabarão por tornar-se necessárias. Como no caso do kit de primeiros socorros, deve haver alguém, no momento, esfregando as mãos na antecipação de vendas às nossas expensas, pois não só quem baixa e fiscaliza essas medidas é pago com nosso dinheiro, como todos os custos nos serão repassados, inclusive os que terão os fabricantes de eletrodomésticos exportados, com a produção de vários tipos de plugue para o mesmo aparelho.


Não sei onde será dado o próximo passo, mas creio que uma área ainda não visada poderá vir a tornar-se objeto de legislação protetora e reguladora. O homem é o que ele come e sabe-se que talvez a maior parte dos problemas de saúde pode ser evitada ou minorada por uma alimentação natural e sadia. Meu único receio é que, baseados em nossa índole, eles nos prescrevam grama.


O Globo, 1/11/2009