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Picasso e o pássaro

 

Picasso tinha pavor da morte - da sua e da dos outros. Nos últimos anos de vida, Jacqueline vigiava o seu dia de tal forma que em caso algum o assunto ou a realidade de qualquer morte o fizesse sofrer, lembrando-lhe que mais cedo ou mais tarde deveria morrer.


Um visitante conta que foi vê-lo num de seus últimos ateliês. Na parede maior, em vez de quadros (ele preferia amontoá-los pelo chão), havia diversas gaiolas com pássaros, o pintor se distraía em olhá-los.


Picasso sentara-se de costas para a parede quando um dos passarinhos, que estava num poleiro alto, teve um troço, morreu e caiu, fazendo pequeno barulho com seu corpinho inanimado ao bater no fundo da gaiola. Picasso já estava meio surdo, não ouviu o barulho, que somente Jacqueline percebeu.


Rapidamente, ela foi à gaiola, retirou o corpinho do pássaro, chamou o motorista do casal, mandou-o a Cannes (que era perto) com a missão de trazer, custasse o que custasse, um passarinho igual.


No final da tarde, o novo pássaro lá estava na mesma gaiola. Picasso não percebeu a troca. Quando a visita se despediu, ele mostrou ao amigo seus últimos quadros. Ao passar pela parede onde estavam as gaiolas, disse com orgulho: "Você não vai acreditar, esses passarinhos são imortais".


Foi pouco depois da morte do passarinho. Ao longo da vida, Picasso fizera vários auto-retratos. Deve ter sido o pintor que mais pintou a si mesmo. Faria o último agora, no ateliê cheio de quadros e pássaros imortais. É um quadro impressionante. Tirante os olhos, redondos, espantados, olhos que viam tudo, o rosto é macerado, rosto de cadáver.


Desde que completara 90 anos, o medo da morte o angustiava cada vez mais. Com sua vitalidade de andaluz, ele sabia que perderia a batalha - a única que não conseguiu vencer.


 


Folha de S. Paulo (São Paulo) 20/04/2006

Folha de S. Paulo (São Paulo), 20/04/2006