Tenho para mim que três narrativas mais ou menos curtas serão, daqui a alguns séculos, consideradas típicas do clímax que a ficção em prosa alcançou, como sucessora do poema-que-conta-história, no período que veio de Tolstoi aos dias de agora. São "A morte de Ivan Ilyitch", do próprio Tolstoi, o "Velho e o mar", de Ernest Hemingway, e "A morte e a morte de Quincas Berro D'água", de Jorge Amado.
Três literaturas diferentes, três idiomas, três ângulos, três técnicas. A do russo fixando-se no doloroso dia-a-dia atingido pelo fim. A do norte-americano realçando a situação de luta do homem diante dos elementos da natureza. A do brasileiro mostrando o lado picaresco de uma escolha entre duas vidas (ou duas mortes).
A técnica minuciosa de Tolstoi, a narração entre épica e tranqüila de Hemingway e o livre humor de Jorge Amado, participam ainda, e fortemente, do clima do poema, são poesia, mesmo já se constituindo em produtos acabados de uma nova classe de ficção, de um modo de resumir numa história curta a frágil indestrutibilidade do homem.
O tamanho da obra de arte literária tem sua importância específica. O molde arquitetõnico do soneto, a forma dos 14 versos, tudo é parte de uma limitação que pode libertar e soltar. Há razões para que pensamentos antigos, os ditados, encontrem guarida na justeza da quadra.
O Ivan de Leon, o velho de Ernest e o Quincas de Jorge tiveram, na precisão de sua forma, o instrumento certo para chegar a um significado e a uma verdade, enfim a um meaning que promova um relacionamento entre os dois mundos: o ficcional e o real, o da obra de arte e o das percepções ao redor, o do livro e o que Heidegger chama de "universo circundante".
Ofereço esta análise tripartite como proposta de inserção de Jorge Amado no mapa da ficção internacional de um tempo. O modo como, na realidade, funciona a mestiçagem, ao aparecer sob o humor e o realismo de um escritor da força de Jorge Amado, precisa mesmo de ser estudado por um grupo de especialistas.
Foi, por isto, com alegria que recebi o livro "Jorge Amado: Leituras e diálogos em torno de uma obra", de que participam, sob a coordenação de Rita Olivieri-Godet e Jacqueline Penjon, os seguintes professores franceses e brasileiros: Myriam Fraga, Pierre Rivas, Anne-Marie Quint, Eduardo de Assis Duarte, Ariane Witkwski, Zilá Bernd, Elvya Ribeiro Pereira, Constância Lima Duarte, Claude Guméry Enery, Rafael Lucas, Rubens Alves Pereira, Sylvie Debs e Lícia Soares de Souza.
O fato de o Brasil ser, mais do que uma sociedade mestiça, uma verdadeira civilização mestiça (compreendendo como "civilização" todo o complexo de conhecimento, de crenças, de religiões, de quisilhas, de comida, de bebida, de tabus, de linguagem, de sonhos, de esperanças, de raivas, de bem-quereres), repetimos, o fato de sermos uma civilização amestiçada torna difícil, àqueles que falam por nós, isto é, aos nossos escritores, chegarem a um retrato nítido e claro do que somos.
Os capítulos de "Jorge Amado: Leituras e diálogos em torno de uma obra" conseguem isto, inclusive porque, ao fazê-lo, cada um dos autores pega um lado, sempre antenado com a mistura racial e cultural do País, visto exclusivamente através da ótica amadiana. Sob esse aspecto, impressionou-me o estudo minucioso de Claude Eméry Enery, "A significação das personagens mulatas nos romances de Jorge Amado".
Tanto nesse capítulo como no resto do livro a "mulata" - assim entre aspas - representa o próprio Brasil e é a grande personagem do livro. A creoulização do Brasil identificada e desenvolvida por Jorge Amado, pode levar-nos a surpreender outro país, além do nosso, um país que vive dentro do nosso, um país tanto de ficção como real, em que a filosofia de outros povos se mistura com uma tradição milenar que nos vem da bíblia e do mundo greco-romano.
De repente, descobrimo-nos como donos de um pensamento selvagem em que "dançar" pode ser entendido por quem dança com uma frase: "Eu sou a dança". A mestiçagem nos leva a esta posição que nos vem do índio ou da presença da filosofia africana de vida entre nós.
Este livro sobre Jorge Amado, feito por 17 especialistas, tem por base um colóquio realizado em Paris nos dias 15 e 16 de novembro de 2002. Trata-se de uma revisitação acadêmica da obra de criador de Gabriela.
"Jorge Amado: Leitura e diálogos em torno de uma obra" é um lançamento da editora Casa de Palavras da Fundação Jorge Amado, Bahia. Coordenação editorial de Bete Capinan, capa, projeto e supervisão gráfica de Humberto Vellame.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 15/03/2005