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Pequenas lembranças do grande Jamelão

 

Foi um personagem maravilhoso, com suas manias e o senso crítico que nunca o abandonou


COMO JÁ disse em crônica publicada nesta semana, vi um programa especial dedicado a José Bispo, personagem que muita gente não conhece, uma vez que seu nome de guerra é Jamelão.


Gravado em 1973, não estava atualizado, pois de lá para cá ele continuaria na ativa, interpretando sambas da Mangueira, gravando e fazendo shows. Mesmo assim, o núcleo de sua passagem pela nossa arte popular já era histórico.


Uma das coisas mais difíceis que já tentei foi definir a voz dele. Um vozeirão por sinal, mas que se ouve como se fosse um sussurro, um lamento saído de uma alma sofrida, às vezes gozadora, mas sempre legítima, autêntica, inconfundível.


Se me pedissem para apontar o maior cantor da nossa história, eu não iria de Orlando Silva nem de Silvio Caldas, que foram realmente maiores, mas ficaram devendo parte dessa grandeza ao repertório de uma época que os entendidos em música popular consideram de ouro. Com Jamelão, o furo é mais embaixo. Excetuando o "Folha Morta", de Ary Barroso, e de alguns Lupicínios clássicos, ele ficou sendo uma espécie de intérprete da série B, cantando e gravando sambas-enredo complicados, lamentos de dor de corno, enfim, esse desfile de sucessos populares que a crítica e o gosto de Ipanema consideram cafona.


Basicamente, um cantor da gafieira, de boate, de churrascaria, com repertório apropriado e majestoso. Mesmo assim, e sobretudo por causa disso, sua importância como cantor é, além de histórica, íntima de todos nós. Como não associá-la a alguns dos melhores momentos de nossas escolas de samba, como "O Mundo Encantado de Monteiro Lobato"? E a maravilha que é e sempre será, porta-estandarte musical, sua "Exaltação à Mangueira"?


O próprio Jamelão procurava ciscar entre os compositores do banco de reservas. Deu amplidão nacional a produções que, sem a sua voz, ficariam no limbo dos terreiros, das rodas de samba, e como disse, das boates, gafieiras e churrascarias.


"Matriz e Filial", de Lucio Cardim, obra-prima da melhor e mais legítima cafonice, que chega a ser imitada eventualmente por autores sofisticados como Chico Buarque, a dupla João Bosco-Aldir Blanc, Billy Blanco e mais raramente Caetano Veloso, foi buscada por Jamelão no chamado "túmulo do samba" que é São Paulo.


Inesquecível (e comovente) a voz chorosa com que canta aqueles versos: "Quem sou eu, pra ter direitos exclusivos sobre ela...". Isso sim, é beleza pura.


Outro lado fascinante de Jamelão são as suas produções como autor. Uma delas, pelo menos, faz parte de nosso panteão musical. Embora lançada para um carnaval, tornou-se sucesso para o chamado "meio-ano", ou seja, para sempre. "Fechei a Porta" ("Eu não quero mais amar para não sofrer ingratidão... fechei a porta do meu coração"), que ele assinou com o nome de sua mulher, é uma pequena jóia dessas que se ouve uma vez e nunca mais se esquece.


Capítulo à parte na biografia de Jamelão, e na própria história de nossa música popular, é a gravação de "Folha Morta", uma das composições mais rebuscadas de Ary Barroso, e certamente a de mais difícil expressão. Volta e meia Ary tinha esses lampejos complicados que o aproximavam dos eruditos, de um Dvorák, por exemplo. O desenho da melodia é clássico, poderia ser cantada por Paul Robson ou Leonard Warren.


Ajudado por excelentes instrumentistas, Jamelão salvou Ary de uma veleidade. Deu expressão dolorida àqueles altos e baixos da melodia, tornando-a um dos grandes momentos de nossa arte popular.


Além de sua importância como cantor, Jamelão foi um personagem maravilhoso em sua vida pessoal, suas manias, o senso crítico que nunca o abandonou. Com ele aprendi uma lição que considero filosófica e que costumo usar para acentuar o pessimismo que em dose maior aprendi com Machado de Assis. Quando era fotografado, pediam que Jamelão deixasse de lado a cara séria e risse, ou pelo menos sorrisse. Ele perguntava ao fotógrafo: "De quê?".


Lembro Graciliano Ramos, que tinha fama de rabugento, mas no fundo era um gozador. Otto Maria Carpeaux chegou à Redação e cumprimentou-o: "Bom dia!". O velho Graça perguntou: "Você acha?". Anos antes, Jamelão já tinha feito a mesma pergunta a um desconhecido que o saudara.


Folha de S. Paulo (SP) 20/6/2008