No fim deste mês, como todo ano, deverei passar uns dias em Itaparica. A vida está parecendo cada vez mais que quer dar a apressadinha do fim, os amigos vão sumindo, dá saudades da infância, que os anos não trazem mais. No caso de Itaparica, não é impossível que a própria ilha suma, porque o nível do mar está subindo e todas as ilhas como ela desaparecerão. Num futuro bem remoto, quem sabe, talvez até questionem sobre se a ilha alguma vez existiu mesmo, como hoje fazemos com Atlântis. Entrarei na História, Deus permitindo, como um dos maiores mentirosos brasileiros de todos os tempos, inventor até de uma ilha e seus habitantes.
Não é pouca porqueira, em momento em que tudo é o maior ou melhor da nossa História, ou mesmo da História Universal, como o nosso presidente, a depender de que aspecto de sua biografia ele esteja abordando no momento. Acho bonita tanta auto-admiração assim. Se o próprio sujeito não é o primeiro a se dar valor, quem é que vai dar? E, quanto a ser mentiroso ilustre, receio estar condenado ao terceiro time, ou mesmo a ficar fora de peladas, porque a competição é dura.
Aliás, não há competição, pois não é bem que os nossos governantes mintam. O que eles fazem é arte mais fina, mais depurada. Eles simplesmente ignoram a verdade e dizem o que acham necessário dizer, em determinado momento. Diante de um sistema de saúde caindo aos pedaços, o presidente diz, com toda a sinceridade, que nosso sistema de saúde se aproxima da perfeição. Mais tarde, diz que qualquer brasileiro tem acesso o tratamento médico que ele tem. Não, com toda a certeza ele não ficou maluco, como Calígula, que não achava mais interlocutores entre os mortais e ia bater boca com Júpiter Capitolino.
Claro que ele não é maluco, apenas aprendeu que pode dizer qualquer coisa e, no instante seguinte, desmenti-la com a maior cara-de-pau. Qualquer um pode dizer qualquer coisa e raramente a afirmativa de que a estatística é a arte de mentir com precisão espelhou mais o que acontece em nossos dias. Todo dia nos engabelam com estatísticas do tipo "cem por cento das pessoas que morreram de câncer beberam água" e lá vamos engolindo tudo, não só porque não temos como contestar números saídos da forja governamental como porque, às vezes, metodologias ou filosofias adotadas fazem com o que os resultados de pesquisas sobre o mesmo assunto sejam contraditórios entre si. E quem assiste a vários noticiários de tevê no dia e lê dois ou três jornais nunca sabe o que está realmente se passando. Um dia estamos bem, no outro estamos de volta à beira do abismo. Mente-se de todos os lados e em nome de todos os interesses. E as jogadas improvisadas, típicas do futebol e da vida brasileiros? O presidente diz: "Não vai haver aumento de impostos." No dia seguinte, há aumento de impostos e a promessa do presidente, tolinhos, só valia para o final do ano. Assim como não se baixou pacote nenhum. Pacote é quando o governo vem e diz: "Estou baixando um pacote." Quando, porém, baixa um pacote mas diz que não está baixando pacote, não está baixando pacote. Só a má vontade é que não vê sentido nisso.
Agora, neste janeiro, já temos duas afirmações do governo para ponderar. Não se trata de saber se as afirmações são mentirosas, porque, como a maior parte das outras, devem ser. Trata-se da complexa questão de sua exegese - admitidamente facilitada por alguns precedentes, pois é relativamente seguro partir da premissa que a verdade é o contrário do que estão dizendo. Estão dizendo que não haverá apagão elétrico, mas as tarifas poderão subir, porque podemos acabar tendo de recorrer ao óleo diesel. Na minha opinião trata-se de uma lorota composta a ser compreendida como o seguinte: a) haverá, sim, apagão elétrico; b) além disso, as tarifas subirão, talvez antes, durante e depois do apagão. Admito que é uma interpretação ortodoxa, mas, na minha opinião, a mais sensata. Não aposto porque é jogo de azar, proibido, como se sabe, em todo o país.
Tudo indica também que haverá apagão de gás, pois ele é negado. Isso, para o observador mais calejado, não só torna óbvio que haverá apagão de gás, como se casa perfeitamente com o esquema traçado. Primeiro esgotam-se as reservas de energia hidráulica. Depois, recorre-se ao gás. Em seguida, para não prejudicar as indústrias, raciona-se o gás de uso doméstico.
Portanto, nada de espetacular, ou mesmo anormal, se abre diante de nós, exceto talvez um carnaval prematuro, que nos encompridará cruelmente o ano de trabalho. Sim, temos as novidades dos terremotos em Minas Gerais. Com furacão e ciclone, além da discriminação racial que tantos almejam, entramos em passos céleres no Primeiro Mundo. Já famoso pela sua sorte (talvez nem tanto pela torcida do Corinthians), o presidente, neste momento anterior às eleições municipais em que cargos a oferecer são tão indispensáveis ao desenvolvimento, à geração de empregos e ao amadurecimento da nossa democracia, recebe esse mimo de graça: a oportunidade de criar o Ministério de Sismos, Terremotos e Desabamentos, a ser entregue a um companheiro especializado, que já tenha assistido a pelo menos dois filmes sobre terremotos.
De resto, uma febre amarela aí, mas que só está ameaçando mesmo uns vinte estados e venha ela branca, preta, vermelha ou da cor que quiser, que nós a venceremos. Tenho certeza de que seria isso o que o presidente responderia, se perguntado repentinamente sobre o assunto. E chamaria logo o Itamaraty, para exigir explicações da China sobre esse negócio de febre amarela aqui no Brasil.
O Globo (RJ) 13/1/2008