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Pensar o Brasil

 

Tivemos, desde o começo, movimentos que podem ser chamados de tentativas de "pensar o Brasil". Povoávamos o País, queríamos conhecê-lo naquilo em que, depois da Europa, ele era novo. Antes de o pensar, precisávamos "lê-lo". Pois a terra estava aí, com sua estranheza, como continua estando, pronta para ser lida. De Anchieta em diante, começamos a fazer essa "leitura", queríamos conhecê-lo, incorporá-lo a nós.


Povoamo-lo, fizemos o que foi possível para torná-lo nosso. Aprimoramos nossa "leitura" do Brasil ao longo do século XIX, depois que a independência nos dera mãos livres para o fazer. Muitos brasileiros de então sabiam que o País tinha de mudar, e discutiam essa mudança em escritos e análises que nos ajudavam no esforço de pensá-lo. Foi, assim, natural que os mudancistas lutassem contra o regime da escravatura e sonhassem com a República.


Temos a certeza de haver Castro Alves lido o Brasil, registrado sua leitura em versos que até hoje nos comovem. O Machado de Assis dos tempos monárquicos lia-o a seu modo, não só nos contos e romances que escrevia, mas também em suas crônicas para jornal. Leu-o ainda, mais próximo de um problema que não podia continuar sem solução, um Joaquim Nabuco, em seu livro "O abolicionismo".


Na década inicial da República (embora suas análises só viessem a aparecer em livro no começo do século XX), ocorreu a presença de Euclides da Cunha em Canudos, de onde saiu com o material de seu "Os Sertões", em que o Brasil era pensado de modo integral. Diante dele, o homem destes trópicos do Atlântico Sul descobriu que estava nu. Havia um Brasil que estava fora dos valores do litoral.


O livro seguinte, que nos estudou com profundidade, lançado em 1928, foi "Retrato do Brasil", de Paulo Prado, que o chamou de "ensaio sobre a tristeza brasileira". Cinco anos depois sairia "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, que, mais tarde, contribuiria ainda com dois trabalhos concebidos na mesma linha: "Sobrados e Mucambos" e "Ordem e Progresso".


O livro que nos estudou de modo peculiar foi "Populações Meridionais do Brasil", de Oliveira Viana, cujo primeiro volume, publicado por Monteiro Lobato, saiu em 1920. Nele, o autor pensa o Brasil inventando uma contagem de séculos exclusivamente brasileira. Assim, do século XVI ao XX anota como o País pertencendo a um século I e vindo até o século VI.


Em seguida, bem mais recentemente, ingressou Paulo Mercadante, com dois excelentes livros, no grupo dos que pensam o Brasil. O primeiro foi sobre o lado conservador e de conciliação do País, que vem de longe e pode ser identificado, inclusive, neste começo de um milênio, com um governo novo que também luta por mudanças. Título: "A consciência conservadora no Brasil: contribuição ao estudo da formação brasileira".


O segundo, publicado este ano, "A coerência das incertezas: uma fenomenologia luso-brasileira", analisa os símbolos que, desde o início do mundo português e do idioma que viria a ser o nosso, povoam nosso imaginário e nossa realidade.


Agora surge outro escritor brasileiro, já famoso como ficcionista e biógrafo, Moacyr Scliar, com "Saturno nos Trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil", que é um ótimo ensaio, em tudo apropriado a pertencer à lista dos que "pensam" o Brasil. Na passagem da Idade Média para a Renascença, tempo da Peste Negra e da caça às bruxas - mas também de avanço nas ciências e nas artes - passavam a Europa e sua cultura por uma espécie de atividade nervosa ligada a uma especulação comercial e a uma busca de novos horizontes.


Na mesma época aportavam os portugueses na região da Bahia e Piratininga e, com eles - analisa Moacyr Scliar - a melancolia européia se instalava no Brasil. Ao tratar do assunto, mostra Scliar, através da literatura brasileira, da medicina (o autor é médico), da política, das artes plásticas, de que maneira essa pesada condição melancólica se apossou de nosso País e influiu poderosamente nos caminhos que percorremos nos últimos séculos.


Machado de Assis, Lima Barreto e Paulo Prado acompanham Moacyr Sliar nessa influência de Saturno em tudo o que fazemos, da melancolia dando forma aos momentos críticos de uma comunidade. Livro de leitura indispensável para uma leitura correta do Brasil, "Saturno nos Trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil", de Moacyr Scliar, é um lançamento da Companhia das Letras.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 08/07/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 08/07/2003