Não sei como nem quando inventaram ou descobriram a existência dos Anjos de Guarda. Apesar de ter sido seminarista, não me lembro de ter aprendido qualquer coisa sobre o assunto. Somente a certeza de que, cada ser humano, eu inclusive, temos um ser angelical que toma conta da gente.
Conheço a iconografia a respeito dessas simpáticas entidades. Um menino está a beira do precipício, colhendo uma flor. Uma cobra se aproxima. O perigo é duplo: ou o menino cai no abismo, ou a cobra o ataca. Mas atrás do menino está o anjo protetor, que impedirá qualquer desgraça.
Apesar de ateu, sou devoto do Anjo de Guarda, atribuo a ele a salvação de enrascadas em que me meti ou me meteram. Tenho secreta vergonha dele, na medida em que ele deve ter vergonhas causadas pelo meu comportamento que nunca chega a ser angelical.
Lembro também uma imagem piedosa, muito comum na minha infância. O menino não está a beira do precipício, nem ameaçado por uma cobra.
Pelo contrário: está pensando numa mulher, nua e provocante, e vai se entregar àquele pensamento que os catecismos chamam de 'imundo'.
O Anjo da Guarda, ao seu lado, nada pode fazer. Recolhe as asas protetoras e enquanto o menino leva as mãos para baixo, o anjo leva as mãos para cima e cobre o rosto. Chora de vergonha pelo feio ato que o menino está praticando.
Havia uma variante para esta cena. O menino no confessionário, dando conta do seu pecado solitário, e o padre recriminando-o: 'Você não tem vergonha de seu anjo da Guarda? Fazendo coisas feias diante dele?'
Meu anjo da guarda, por essas e por outras, muito deve ter chorado de vergonha por minha causa. Tem sido fiel a mim muito mais do que eu a ele.
Folha de S. Paulo, 20/6/2010