As imagens apocalíticas do presídio maranhense, postadas na rede no início do ano, e acompanhadas pela sequência de mortes intramuros até a semana passada, refletem a condição inominável de boa parte do sistema carcerário no Brasil. Denunciam quanto é frágil a capilaridade democrática de nosso país, como se a prisão fosse uma terra proibida, onde a República age apenas de forma intermitente, como se a ordem de direito precisasse negociar tudo aquilo que, em diferentes graus de temperatura e pressão, não se poderia jamais negociar. Sejamos claros: justiça não é favor, nem obra de caridade para quem cumpre pena, mas um direito essencial, a que se obrigam os poderes constituídos. Direito que não termina com a privação da liberdade.
O Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça realizam um trabalho valioso, de que se destacam mutirões processuais, debates com a sociedade, relatórios e sobretudo a reinserção, com projetos em amplas modalidades de emprego. Mas não basta. É preciso que as partes diretamente interessadas assumam a responsabilidade integral desse projeto republicano.
Já em 2008 a CPI da Câmara dos Deputados definiu a situação do presídio de Pedrinhas, sublinhando com repúdio a superlotação, a “salada” de presos – jovens e idosos, doentes e sadios no mesmo espaço –, a tortura, a degradação alimentar, a falta de assistência médica, jurídica e educacional. E não se fez nada.
Pedrinhas é um Carandiru a prestações, sem voz, quase invisível, que fere frontalmente os direitos humanos, com ares de aparente legalidade. A distância que separa os apenados das instâncias judiciárias, em muitos casos, chega a ser a mesma entre a Terra da Lua. E não me refiro apenas ao Maranhão, mas a todos os espaços que resistem ao estado de direito.
Trata-se de um modelo de prisão que produz a morte progressiva daqueles que cumprem pena, cujo débito moral (quando pleiteado) mostra-se completamente assimétrico, na hora de fechar o balanço da morte: o menor preço é reivindicado pelas mãos ausentes e, portanto, “limpas” do estado, ao passo que a parcela mais alta é cinicamente atribuída à assim chamada “barbárie”, dos presos que se matam como feras e sangram as finanças públicas de um estado essencialmente bom. Não passam de homicídios que seguem a lógica do cárcere, com uma geografia que não distingue os presos a partir das facções – incorrendo numa salada mais explosiva que a revelada na CPI da Câmara –, com atritos múltiplos, ajustes de conta e vinganças recorrentes, na disputa de poder e território nas alas prisionais.
As secretarias de administração penitenciária têm o dever de propiciar um ambiente de respeito à subjetividade. Trata-se de uma atitude fundamental para a democracia.
A tortura no Brasil não terminou. É preciso olhar o passado e o presente com a mesma indignação, com a mesma e incontornável fome de justiça.
Pedrinhas
O Globo, 07/05/2014