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Pavor antigo e terrorismo novo

 

Apetrecharam-se os canais de televisão americanos, há poucos dias, para dar a notícia da eliminação de Abul Zahuri, segundo potentado na cadeia da ignomínia de Bin Laden, como ameaça em vão do terrorismo islâmico. Reprimiu-se a notícia na garganta mediática, tanto os disparos caíram sobre uma aldeiota, violando as fronteiras do Paquistão, em toda a desenvoltura com que a "civilização do medo" não tem limites frente ao anonimato da ameaça e a instantaneidade da resposta.


A noção do terrorismo avançou sobre o antigo quadro de confrontos voltados sobre regimes políticos e imperativos de mudança. Ficam para traz o velho anarquismo, nos riscos limite que assumia, em bem de uma grande utopia a que sacrificavam a sua vida. O mundo do Al-Qaeda não tem trégua, nem se desarma, nem visa mira particular, no levante sem torna e no falso entendimento do que é a civilização ocidental, seus males, seus progressos e, sobretudo, quais os protagonistas de seu efetivo desfrute.


Estão se repetindo as declarações de Donald Rumsfeld, em Bagdá, vagas e imprecisas, quanto ao momento da retirada americana, não obstante veja-se o Partido Republicano acossado, diante das próximas eleições. Evasivas são, também, as frases de Bush, hoje, nas suas andanças européias, a relembrar o quadro das guerras de 100 anos do começo da Renascença, quando a fé dos governos criava um conflito sem volta, entre católicos e protestantes. Não há que ver o atual conflito como uma "guerra de religiões", mas, sim, o repúdio à posição hegemônica que assumiu os Estados Unidos, como exportador de uma idéia de progresso e da virtualização de seus ideais, impostos à dinâmica da mudança universal.


Toda sociologia da crise e da resolução dos conflitos que brotou após o 11 de setembro só fazem realçar como o abate das torres precipitou um desconforto generalizado de um verdadeiro inconsciente coletivo diante da implacabilidade da máquina do mundo em que se transformou a modernidade ocidental. Haveria a falar num irracional gravíssimo de protesto, que não reformula mais as razões de sua agressão, mas exprime um mal-estar, de que não se dá conta. Uma significação intrigante perpassa a hecatombe das torres, a explosão dos ônibus ingleses, a explosão, ou a das ferrovias espanholas. Já foi também assinalado, por esses mesmos estudos, como, na cultura muçulmana, a noção do martírio não se confunde com a do Jihad. Esta é uma guerra assumida coletivamente com suas etiquetas e regras, com os seus perdões e salva-guardas, a partir de um combate frontal pela fé.


O martírio começa hoje a ser objeto de maior estudo nas madressas do Oriente Médio. Passaria ao cotidiano islâmico, a acometer vingadores particulares, como se se vissem possuídos de uma expressão profética de um inimigo de Deus. Erram o seu objetivo os superaviões não tripulados de Bush, as descargas eletrônicas dos seus mísseis, ou o portento dos seus radares. Acreditam num alvo definido, em conspiradores ou gangs de abate, tal como todos respondessem a um mesmo e intrincado networks, de comandos, obediências, e imolações silenciosas.


Todos os caminhos não levam a Bin Laden, e seus prepostos diretos, nem se pode definir como portentosa organização a que arma o braço dos sucessivos assassinatos anônimos nas megalópoles ocidentais. Há, ou não, afinal, difuso e muito mais inquietante, um repúdio retardado à modernização a outrance, expropriando a alma dos povos siderados pelo efeito de demonstração e pelo consumismo do universo mundial de mercado, seus preços, suas edições, seus desfrutes. Estamos ou não, para além do velho terrorismo, diante de uma reação tão clandestina quanto gigantesca em vários focos do mundo islâmico, e começando a atingir, como se vê nos relatórios dos suicidas mártires no Oriente Médio, a impressionante percentagem da mocidade. A menina que enverga seu colete de dinamite beija os pais e toma o ônibus para explodir,não é uma comandada de Bin Laden. Participa deste enorme levante da subjetividade universal diante de seu logro como partícipes virtuais do dito mundo do progresso sem fim.


É este o quadro em que a volta a uma cultura da paz realística e determinada não enfrente apenas uma logística apocalíptica e terminal do terrorismo, mas sabe que não vai por essa mesma lógica a um desarme, mas a de um estado permanente de alerta a que o espetáculo do mundo não se transforme no escândalo do desfrute de poucos e da abominação e levas inteiras. O debate da alternativa entre neoliberalismo cediço ou socialismo metabolizado, deve ser precedido da consciência da marginalidade subcontinental e das "ações afirmativas" que já venham à contínua mobilização comunitária. O não devoramento das antigas periferias pela civilização de consumo parece ser hoje o sinal mais significativo da saída da inércia ou do estado de coisas do mundo hegemônico. E até onde a mobilização hoje em países de vocação democrática, como do País de Lula, pode ser um ponto de partida para que uma cultura de acesso a serviços predomine sobre a do consumismo estrito mais do que do estrito desfrute da propriedade das coisas?


O terrorismo respondeu à sufocação consumada pelo portento civilizatório e indicam o quanto, para depois da miséria física, começa a expropriação da alma e a perda da identidade que é ainda o último direito dos pobres a dizer o que queiram, ou a ver-se no espelho. O universo que perdeu a batalha da luta contra a pobreza e concentra como nunca a sua renda pode estar diante da ameaça nova em que um sentimento de destituição da cabeça toma conta do vazio do estômago e da perda limite da qualidade de vida.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 27/1/2006