Neste Natal, muitos de nós, uma hora lá qualquer da noite, vamos ficar meio de beiço pendurado e ânimo melancólico. Sempre que converso com mais de uma pessoa sobre o Natal, pelo menos uma delas me diz que partilha comigo desse sentimento um tanto indefinido, não propriamente tristeza, mas uma certa dor difusa, uma certa saudade de nada, uma certa melancolia, enfim. É algo, como as doenças de antanho, que vem com os pneumas, os fluidos misteriosos que enchem o ar sem que nos apercebamos. Tanto assim que contagia até quem não é cristão, como sei que acontece.
Se muita gente fica imprecando contra a chatice dos rituais familiares de Natal - ainda mais hoje, quando os descasamentos e recasamentos são tão freqüentes que há pessoas que, de família imediata, têm umas 20 -, pior, muito pior, é passar um Natal sozinho. Passei um, faz anos e anos, sem necessidade, só para mostrar, na habitual insensatez juvenil, que encarava.
Encarei, mas quase seco de tristeza, fiquei um tempão sem me levantar no dia seguinte, olhando a neve caindo. Ainda por cima, era Natal de filme americano meloso, eu estava nos Estados Unidos - e até hoje tenho problemas com a Quebra-Nozes e Jingle Bells, porque era só o que se tocava no rádio e na tevê.
Mistérios natalinos e eu aí penso em evitar diametralmente o caminho melancólico, contando histórias que às vezes têm muito pouco a ver com o Natal propriamente dito. Mas só disponho mesmo das duas que já contei dezenas de vezes e as repito descaradamente todos os anos, como este. A primeira é como fiz papel de besta no seio familiar (aliás, considerando a minha família, onde o mínimo que despontou foi Walter Ubaldo, o filósofo itaparicano da escola do Sorriso de Desdém, isto não deveria ser de estranhar-se), contando, com uns 8 anos de idade, como tinha estado com Papai Noel na noite anterior e batido um longo papo com ele. Todo mundo me ouvia com seriedade e eu, crente que estava abafando, passando pelo maior mentiroso da família. O que, aliás, pressagiava o meu destino de mentiroso profissional, na condição de ficcionista. Não gosto muito de lembrar essa ocasião vexatória.
A outra (nome trocado, já não sei quantas vezes, para proteger um inocente, ou, pensando bem, um culpado) envolveu Seu Barbosa, nosso vizinho, que tinha um quintal enorme, num dos cantos do qual ficava o quarto, na verdade, uma casinha, da empregada. Neném, um dos mais experientes de nossa turma, com pai dono de cinema e tudo mais, sustentava que não havia Papai Noel e a corrente liderada por mim, é claro, asseverava que havia, inclusive à custa de outras mentiras, de minha invenção pessoal ou bem aceitas como contribuição de correligionários. Fizemos uma patrulha para flagrar Papai Noel na noite da véspera de Natal e me coube o temerário posto do quintal de Seu Barbosa. Foi lá que eu ouvi vozes dentro do quarto da empregada, aliás, vozes e ruídos insólitos, uma trilha sonora então para mim extraterrestre, embora mais tarde se tenha revelado humana, demasiadamente humana.
- Papai Noel? - bati eu na janela, sem falar muito alto. - Papai Noel?
O barulho cessou repentinamente, as vozes se calaram. Movimentos frenéticos são ouvidos lá dentro, a janela se abre com estrondo e dela pula quem mais senão Papai Noel, embora vestido numa espécie de calção branco e puxando uns panos, em vez de um saco, atrás de si. Um Papai Noel estranhamente parecido com Seu Barbosa, mas Papai Noel, sem dúvida, até porque, certamente para apreciar os presentes, a empregada fechou a janela mais que depressa, logo em seguida, sem parecer ouvir meus apelos em contrário.
- Papai Noel! - mantive, excitadíssimo, na reunião que se seguiu. E, naturalmente, já pensava em editor, quando acrescentei alguns toques extras ao ocorrido, tais como eu ter tido a oportunidade de alisar uma das renas estacionadas perto da cajazeira grande. Não fiz nada, contudo, porque Seu Barbosa veio ter uma conversa conosco, anunciou que esse negócio de ver Papai Noel era coisa de pirobo, que era melhor as nossas mães não saberem que tínhamos andado fora já mais de nove, tardíssimo da noite, e que aquele ricos mirreizinhos que ele agora botava em nossas mãos servissem para lembrar-nos a conveniência, como bons não-pirobos, de ficar de bico calado.
Pois é, são as minhas histórias de Natal, talvez até você já conhecesse ambas. Gostaria de ter outras. Acho que não curti certo meus Natais infantis. Meu excesso de preocupação com Papai Noel talvez me tenha alienado um pouco, até para as comidas estranhas que serviam na festa. Mas não tenho e fico melancólico outra vez e com certeza subliterato, ao pensar que Papai Noel devia existir era para nós, adultos de hoje e não meninos da era do livro, do gibi e do brinquedo feito em casa, que tiveram mais do que puderam desfrutar. Adultos como eu, por exemplo, que precisam tanto de uns favores do Bom Velhinho. Pedi a ele para me aliviar um bocadinho da malha médica, agora estabilizada num plantel maior do que o do Botafogo (mais bastante melhor de bola, graças a Deus). Não consegui. Pelo contrário, adicionou-se a ela a malha odontológica, que vem forte por aí, a julgar pelo meu primeiro papo com o dentista. Ele olhou e disse que a situação não estava boa, mas dava para quebrar o galho. Achando que ia conseguir uma adiadazinha e deixar de passar a maior parte de minha vida lendo Caras em consultórios, perguntei se não dava então para começar o tratamento daqui a uns dois meses.
Negativo, começar logo. Quer dizer que eu ia perder um dente, se não começasse logo? Um dente não, todos, disse ele. Podes crer, disse eu, pensando em se, nesta triste conjuntura, não seria possível montar meu escritório numa clínica médico-odontológica e abrindo a boca resignado, mas com raiva de Papai Noel.
O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 22/12/2002