Meu colega Humberto Werneck lamentou-se ao perceber que tinha esquecido a carteira em local ignorado, como sempre acontece. Comoveu, porque é um desespero. Esquecer quando precisa ou perder algo precioso. Mas aqui venho dizer que meu desespero foi muito maior, meu sofrimento colocou o dele nos chinelos. Poucas vezes senti tal angústia, exatamente na noite mais importante de minha vida, a da posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), na sexta-feira passada.
Preparei-me há meses estruturando o discurso, peça fundamental. Leituras, mais leituras, pesquisas, entrevistas e a fala foi sendo montada. Amigos leram, fizeram sugestões, ajudaram a melhorar. Terminado, li e reli dezenas de vezes para ficar familiarizado. E estava calmo e confiante que seria uma bela noite. A Academia resplandecia, amigos tinham vindo de todo o Brasil, de Fortaleza, Recife, Bauru, Passo Fundo, Andradina, Goiás, Berlim, Alemanha. Isso mesmo, Berlim, Alemanha. Araraquara. Na minha cidade, telões retransmitiriam a cerimônia pela internet, coisa de Copa do Mundo. Nada iria falhar.
Eu confiava na minha fala. Tranquilo deixei o apartamento no Leme, alugado para a ocasião e segui bem cedo para a Academia, queria estar à vontade.
Cheguei na ABL, juntei-me aos acadêmicos para a foto de praxe, fui enviado pelo presidente Marco Lucchesi para a chamada “sala de reflexão”, onde ficaria isolado até o momento em que um grupo de acadêmicos me buscaria para me levar à sala superlotada. O discurso já estava no pequeno palanque, ou púlpito, à minha espera.
Neste momento procurei os óculos. O fardão não tem bolso. Onde eu tinha colocado? Em lugar nenhum, simplesmente não tinha levado. Subiu o frio na espinha, no estômago, na barriga, calafrios variados. Ânsias. O que eu faria? Devia ter decorado tudo. Suor desceu pela testa. O dia inteiro eu tinha pensado: preciso levar os óculos, preciso levar os óculos, preciso levar os óculos, preciso levar os óculos. Pensei tanto que a memória deve ter ficado irritada e bloqueou, travou. Deixei os óculos sobre a mesa no apartamento.
Apesar do isolamento consegui chamar dona Lucia, que com dona Carmem, tem tudo nas mãos. Em minutos elas voltaram com óculos recolhidos de todos os lados. Experimentei um a um. Nada. Muito fortes ou demasiado fracos. E a comissão chegando para me conduzir ao cenáculo (gostei desta palavra). O presidente Marco Lucchesi intranquilo com a “invasão” da saleta. Quando cheguei aos últimos óculos, ele se ajustou. Não era perfeito, mas lembrei-me que, macaco velho, tinha copiado o discurso em espaço duplo e em corpo 18. Daria para ler. Li. Totalmente suado por dentro, mas li, calmamente. E à medida que lia e olhava os rostos ia percebendo que era o meu momento, mais um pouco e eu seria acadêmico, todos os olhos fixados em mim, me transmitindo energia. Eu leve, solto, esquecido o pânico.
Depois vieram os abraços durante três horas, os selfies, centenas, e a fila interminável, será que eu tinha convidado tanta gente? Todos tinham vindo. Velhas caras desaparecidas com o tempo, perdidas no espaço, subitamente surgiram à minha frente. Fantasmas familiares. Um me emocionou especialmente. Ele chegou, bateu continência (anda em moda), disse o nome: Ismael, 124, Tiro de Guerra, pelotão dos sargento William. Fiz o Tiro em 1955 e lembrei-me dele, descolado, brincalhão, não levava nada a sério, bagunçava tudo, eu invejava aquela total irresponsabilidade, balbúrdia. Nossos fantasmas familiares nos acompanham pela vida.
“Chegou aí em cima, hein, Brandão? Nem te enxergo tão alto que subiu, valeu, valeu mesmo.” Fiquei pensando em Ismael, o que faz agora. Como soube, chegou ao Rio, à Academia? Onde esteve esses anos todos, tem minha idade e está muito melhor do que eu.
Quando os abraços terminaram, a noite tinha quase acabado, uns poucos primos me esperavam, Ismael tinha sumido, a noite tinha sido minha, continuará comigo e talvez muitos vão se lembrar quando cheguei e disse, esqueci os óculos, e devem ter tido piedade, susto, o que ele vai fazer?
O Estado de S. Paulo, 25/10/2019