Quinhentos e oito anos depois que aquele "frol de mancebia jovem", no dizer de João de Barros, vencera o mar, mistérios e objetivos, desde o embarque no Restelo à chegada em Porto Seguro, estamos mais uma vez a cuidar da palavra. Cuidar da semente da linguagem e da credencial que identifica e promove.
A promulgação do Acordo Ortográfico compõe a consciência de que a língua também é expressão de poder.
O Presidente da República escolheu o cenário perfeito para o gesto certo. A Academia Brasileira de Letras, por vontade dos seus membros e por dispositivo do seu Estatuto, "tem por fim a cultura da língua".
Ao cumprir o comando de Machado de Assis vimos coligindo elementos do vocabulário dos brasileiros, integrando-os à língua portuguesa, e atentamos para as diferenças do falar e do escrever dos países da CPLP. E o fazemos, ainda sob a recomendação de Machado, defendendo a língua "daquilo que não venha de fontes legítimas - o povo e os escritores - não confundindo a moda que perece, com o moderno que vivifica".
Eis aí o claro caminho das atividades da ABL, que é o de ser atenta à modernidade sem concessões ao modernoso, uma instituição comprometida com o contemporâneo mas sem desprezar as conquistas da sua tradição.
A língua se altera e aumenta com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querê-la estacionada ou negar que fora do seu berço tem se enriquecido é uma insensatez. A língua é viva. A influência do povo dá-lhe vitalidade.
Disse isto claramente aos portugueses, na passada condição de presidente da Academia Brasileira de Letras, ao discutir o Acordo. Insisti que a nossa língua não poderia sofrer espartilhos de engessamento. Tinha comigo, a pensar igual, muitos lusófonos africanos.
Portugal que sofrera isolamento político pelo salazarismo não poderia adotar postura de imutabilidade na lusofonia. Discordava da posição de vários interlocutores e de alguns confrades de lá. Irmanado na língua e na cultura o Brasil criou sua independência política, cultural e literária. Mesmo que expressões literárias de hoje entre Brasil e outros lusófonos mostrem diferenças no trato da mesma língua, como poliglotas em português, esculpimos na talha do tempo a perenidade das criações estilísticas feitas com o mesmo instrumento: nosso idioma comum. Alberto da Costa e Silva tem acertadamente chamado a atenção de que uma língua para ser verdadeiro elo de cultura e de entendimento transnacional também depende de uma disseminação numérica e geográfica, além do poder relativo que os seus utentes detenham no concerto das nações. O Acordo Ortográfico serve a esse propósito, como a ampliar os mundos interno e externo de leitores, dimensão relevante da existência dos bens culturais.
A ABL tem consciência de que lhe cabe contribuir na incessante produção literária, facilitadora do aumento do público leitor; na erradicação do analfabetismo onde quer que ele esteja; no apoio ao fomento de políticas de incentivo ao hábito de leitura, no propósito de favorecer melhor educação formal ao nosso povo. Afinal de contas nosso público é a nossa gente, aberta ao sincretismo da diversidade. Cabe ao setor público apoiar a iniciativa privada no fortalecimento da língua, por um Brasil maior e melhor. Um Brasil que leia mais. Um Brasil que escreva melhor. Um Brasil que se orgulhe de ser falante nesse português dúctil, dulcificado, com aptidão para renovar-se. E não esqueçamos Martinho da Vila cantando: "É sonho ver um dia / A música e a poesia / Sobreporem-se às armas / Na luta por um ideal / e preconizar / A lusofonia / Na diplomacia universal".
Diário de Pernambuco (PE) 08/10/2008