O uso da palavra pelos que estão no poder - isto é, da palavra que influi, que muda uma comunidade e abre caminhos - é um de seus aspectos em que às vezes menos prestamos a atenção. Dos políticos recentes - a partir da Revolução de 30, digamos - lembro-me sempre de Otávio Mangabeira, não só o parlamentar, mas também o acadêmico. Quem quer haja estado presente à sessão solene promovida pela Academia Brasileira de Letras em 1958, para comemorar o cinqüentenário da morte de Machado de Assis, não terá esquecido a mistura de leveza e força que Mangabeira utilizou, ao falar, de improviso, sobre nosso maior escritor, cuja cadeira Otávio ocupava.
Consta que escrevia seus textos antes, mas não os repetia integralmente na tribuna, seguia apenas o fluxo do pensamento e das palavras que anotara, o que só lhes aumentava o valor. Da oratória de Rui Barbosa, temos volumes que são testemunho permanente da altura que a língua portuguesa pode atingir.
A de João Neves da Fontoura, já no período pós-30, marcou todo um período, tumultuado por excelência, de nossa realidade parlamentar. É normal que saiam em livros, discursos, manifestos, memórias e levantamentos de uma época. Nesse particular, ninguém foi mais longe, no século XX, do que Winston Churchill, cujos livros o levaram a uma vitória diferente da que obtivera na II Guerra Mundial, pois, em 1952, estava em Estocolmo para ali receber o Prêmio Nobel de Literatura.
Indo mais longe, Caio Júlio César continua sendo o ideal do homem que uniu as rédeas da inteligência com as do poder. Em sua "História de Roma", diz Mommsen que , durante séculos, iria o mundo seguir a trilha traçada por César, e acrescenta: "César governou como rei de Roma durante cinco anos e meio, apenas a metade do reino de Alexandre: durante o intervalo de sete grandes campanhas que não lhe permitiram ficar ao todo nem 15 meses em Roma, decidiu os destinos do mundo para o presente e o futuro, desde o estabelecimento de uma fronteira entre a civilização e a barbaria até a supressão das poças de água na capital, e conservou bastante tempo e domínio de si mesmo para seguir no teatro as peças premiadas e para outorgar a coroa ao vencedor com versos improvisados".
No meio de suas guerras e lutas para expandir as fronteiras de Roma e dar uma estrutura mais forte ao Estado, César escreveu "De Bello Galico", livro que se destaca num milênio, como exatidão de linguagem e segura utilização de vocábulos.
O "Vim, vi, venci" ficaria como símbolo de síntese, e síntese foi sempre a qualidade do grande homem. Analistas que sentem a atração da estatística já fizeram pesquisas sobre o assunto: descobriram que se há uma virtude que tem existido em todos os grandes homens - tenham eles sido filósofos, guerreiros, estadistas, profetas, líderes religiosos, industriais ou puros poetas - é esta: disseram tudo o que tinham a dizer com o máximo de clareza e o mínimo de palavras. Não é à toa que a concisão é uma eminente conquista literária.
Sob esse aspecto, um dos melhores discursos políticos de qualquer época é o que Abraham Lincoln pronunciou em Gettysburg a 19 de novembro de 1863. Havia sido, aquela, a primeira batalha decisiva que a União vencera. No palanque armado no local, para comemorá-la, falaria Lincoln.
Todos esperavam um discurso heróico, de mais de uma hora, palavroso, com frases que falassem na próxima vitória final. Lincoln olhou para o campo em que haviam morrido milhares de combatentes, dos dois lados, e leu um texto de cerca de dez linhas em que ele dedicava aquela homenagem aos vivos, aos que, a partir dali e de então, iriam reconstruir a União.
Como escritor de um tempo diferente do de César, com instituições ampliadas e faces diversas, chegou Winston Churchill, como escritor, a um bom equilíbrio entre uma prosa conceitual e um estilo narrativo. Também Disraeli fora escritor, compusera romances, mas Lord Beasconfield não mantivera, como Churchill, permanente ligação com o mundo da palavra.
A "História dos povos da língua inglesa", de Churchill, de que saiu edição brasileira, em quatro volumes, é bom exemplo de um seguro estilo de historiador que se afasta de enfeites desnecessários. Parte de suas "memórias", publicada por um jornal do Rio há alguns anos, foi por mim traduzida, e lembro-me das vezes em que me detive, dedo na tecla, no espanto de uma expressão bem conseguida e de uma frase elaborada com precisão e uma inesperada economia de adjetivos.
Também como orador, cuidava Churchill de todos os detalhes que cercam o exercício desse método direto de comunicação. Estudava, para tanto, tons de voz e gestos, ensaiava mesmo diante do espelho, examinava em que trechos deveria tornar-se veemente e violento, ou manso, ou reticente.
Tal como César, era uma guerra que ele dirigia, e precisava ganhá-la também através da palavra. Não havia separação entre as decisões que tinha de tomar em encontros com técnicos, generais, políticos, administradores, através de diálogos muitos, e os discursos feitos para o povo e para o Parlamento, que era o povo em sessão.
Não é de hoje que a liberdade se conquista com palavras. Elevada ao poder, com a responsabilidade permanente de encaminhar soluções e resolver problemas, tanto os de soluções simples que facilitem a movimentação das gentes nas ruas, vias, vielas, praças e estradas, como os de vida ou morte, como a fome, as epidemias - de febre amarela, dengue, malária ou o que for, a palavra é sinônimo de liberdade.
Assim, quando Churchill compareceu ao Stadt-Huset de Estocolmo para receber o Prêmio Nobel de Literatura, estava tendo o reconhecimento de que seu combate pela manutenção das liberdades públicas num mundo perturbado tinha sido também uma luta de escritor.
Tribuna da Imprensa em 06/03/2002