Sabemos que a palavra é a base do pensamento e de tudo o que de lá sai e vira escrita. Com ela amamos, odiamos, gritamos, xingamos, pedimos pão. O haver Jean-Paul Sartre produzido um livro exclusivamente sobre palavras, numa espécie de autobiografia cultural, explicando como haviam "Les mots" entrado em sua vida, teve um firme significado no entendimento de sua obra, não só literária, mas também a de puro teor filosófico, um "L' être et le néant" ou "Critique de la raison dilactique".
Desde criança, dizia frases em voz alta, a família o julgava gênio, o avô tinha a certeza de que, naquele menino, estava um futuro Shakespeare. Na realidade, o menino imaginava "romances". Dizia a si mesmo: "Nasci para escrever". E, no círculo da família, havia a certeza de que ele escreveria e o avô lhe dizia: "É preciso aprender a ver." E citava o caso de Maupassant:
"Você sabe o que fazia Flaubert quando Maupassant era pequeno? Instalava-o diante de uma árvore e concedia-lhe duas horas para descrevê-la". Assim aprendeu Sartre a ver. Contudo, duvidava de si mesmo, perguntava-se: "Chegarei a ser um grande escritor?". Lembrava-se da frase de Chateaubriand: "Sei muito bem que não sou mais do que uma simples máquina de fabricar livros".
O mundo, que Sartre ia enfrentar, seria diferente do que vivera na infância. Nascido em 1905, o primeiro pós-guerra do século XX iria pegá-lo em plena adolescência. Seus primeiros livros seriam publicados nos anos 30 do século passado. Então não só as idéias de Kierkegaard haviam insuflado um espírito existencialista no pensamento da Europa, mas a obra de Heideggar seria a que mais diretamente influiria no pensamento de Sartre. Em "L'être et le néant" ("O ser e o nada"), Sartre define sua posição filosófica.
Filiou-se aí, Sartre, à ontologia fenomenológica, vinda de Heidegger, que procura eliminar os fenômenos da consciência e do conhecimento, cingindo-se, de início, a um ponto anterior mesmo à possibilidade desse conhecimento. As dualidades do "perceber" e "ser percebido", do "ser" e do "nada", do "em-si" e do "por-si", angustiavam o pensamento de Sartre, dando-lhe a pungência de quem oscila entre o "um" e o "outro". A frase de sua peça de "Huis clos" - tantas vezes citada "O inferno é o outro" - demonstra claramente a tentativa de um isolamento que evite a ingerência do "outro" nos caminhos de quem usa estas palavras.
Como nos tempos antigos, o dilema ainda é o mesmo: idealismo ou realismo. Ou as coisas existem e eu as penso. Ou é meu pensamento que lhes dá existência e continuidade. O binômio sujeito-objeto ainda perturba o pensamento de hoje com a mesma pungência com que fez no tempo de Descartes.
Sartre representou uma época de mudança, e representou-a bem. Em contos, romances, peças de teatro, ensaios, estudos filosóficos. Seu pensamento, produto de um tempo, num movimento reversivo influenciou esse mesmo tempo. Quando uma filosofia fica "na moda", é porque tem elementos de profundo contato com as preocupações do homem comum. Sartre dizia conscientemente o que todos sentiam, angustiados que estavam por essa outra dissociação, que é a absorção do individual pelo coletivo.
Tanto em sua obra puramente literária como nos livros análise, mostrou-se Sartre fundamentalmente existencialista, acentuando sempre a parte do "sujeito" na dualidade mencionada. Seus escritos foram os de um idealista, no sentido filosófico da palavra, do homem que não acredita na existência das coisas como coisas, independentes do pensamento que as recebe. As coisas existem porque têm nomes. Isto é; são as palavras que lhes dão existência. Ou melhor: é por estarem escritas que elas existem.
Por esse aspecto, avulta de importância de um livro como "As palavras" em que Sartre revela de que modo se aproximou delas, amou-as, temeu-as, copiou-as, transformou-as em suas, fugiu delas, pegou-as de novo - como o fazem todos escritores que as concebem não só na cabeça, mas nas próprias vísceras. Foi necessário ter havido, no século XX, um escritor como Sartre, com sua coragem de pensar livremente. E de escrever livremente. Em certa parte de sua infância resolveu abandonar as palavras e ficar com a música.
Todos os dias, às cinco da tarde, a mãe de Jean-Paul, ia para o piano e tocava as "Baladas", de Chopin, as variações sinfônicas de César Franck, uma sonata de Schumann, entre outras peças, e o menino, solto na sala semi-escura, dançava e interpretava personagens de peças que havia lido ou visto, em movimentos improvisados, inventava cenas, corria como se ele fosse ao mesmo tempo cavalo e cavaleiro, imaginava-se protegendo uma Condessa contra o próprio irmão do Rei, mas em outras ocasiões ficava triste ouvindo Chopin.
No fim do livro declara-se escritor e afirma que, seguindo o lema latino, escreverá sempre pelo menos uma linha por dia. Eis o que diz: "Escrevo sempre. Que outra coisa fazer? "Nulla dies sine linea". É o meu hábito e, também, é o meu ofício. Durante muito tempo via uma espada em minha pena; agora, conheço nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não se justifica. Mas é um produto do homem; ele se projeta, se reconhece nela; só esse espelho crítico lhe oferece a própria imagem".
"As palavras", de Jean-Paul Sartre, foi traduzido por J. Guinsburg. Edição da Difusão Européia do Livro. Capa de Marianne Peretti.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 14/09/2004