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A palavra em crise

 

Se, como se diz, a linguagem é o que primeiro se degrada quando um país se corrompe, o Brasil está oferecendo vários exemplos. A prova de que o fenômeno ocorre em todos os níveis foi dada esta semana pelo barraco entre dois dignos representantes de nossas mais altas instituições (usa-se preconceituosamente “barraco”, como se certas trocas de ofensas fossem exclusividade de favelados). Fiquei chocado não por moralismo, mas porque sou do tempo em que juiz só se manifestava nos autos, não em bate-bocas pelos jornais. E que procurador, para criticar os excessos verbais de um supremo desafeto, não se excedia e preferia usar “incontinência” em lugar de “disenteria”, como agora. 

Mas esse triste episódio entre o procurador-geral da República e o presidente do TSE, que não respeitaram sequer a liturgia dos cargos, tem mais a ver com a decadência da política e das relações institucionais do que com a crise da palavra escrita e falada, que é mais geral e é atribuída à difusão da chamada “linguagem virtual”, praticada principalmente pelos jovens internautas. Lendo um ensaio sobre o fenômeno, encontrei o seguinte exemplo, retirado de uma mensagem da internet: “Og v6s naum tem 9da10”. A frase escrita, que reproduz a fala oral, quer dizer: “Hoje vocês não têm novidades”. 

Essa é uma curiosa contradição: graças às redes sociais, nunca se escreveu tanto — e tão mal. As três instâncias da linguagem — a vocabular, a semântica e a gramatical — são comumente atropeladas pela pressa ou pela ignorância das normas da língua. Mais até por esta. Outro dia, ao reclamar por não estar entendendo uma mensagem, recebi como desculpa: “É a preça”. Informei então que se gasta o mesmo tempo escrevendo a palavra certa.

Mas é inegável que a rapidez contribui para a popularidade de uma forma de comunicação como o Twitter, cuja “arqueologia” mereceu cerca de 40 páginas do mais recente livro de Domenico De Masi (“Alfabeto da sociedade desorientada”). Segundo ele, “o Twitter representa a última metamorfose do aforismo”, um termo usado pela primeira vez por Dante Alighieri e um gênero adotado por dezenas de grandes escritores desde a Antiguidade. Inclusive Nelson Rodrigues, mas o melhor exemplo é o de Hipócrates: “A vida é breve, a arte longa, a ocasião fugidia, a experiência falaz, o juízo difícil”.

Ao contrário do cético José Saramago, para quem o homem “de degrau em degrau vai descer até o grunhido”, o sociólogo italiano propõe a reconciliação com um instrumento de comunicação mal afamado depois que Trump o transformou numa usina permanente de impropriedades. O que ele mostra é que o problema não é da ferramenta, mas de quem a usa.

O Globo, 25/03/2017